terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Reflexões sobre o conceito de imaginação musical: ouvir e tocar

 3- Ouvir e tocar


A escala pentatônica, portanto, ao mesmo tempo em que permitia tocar algumas melodias simples, ia modelando minha percepção e minha compreensão inicial de como eu poderia juntar notas de modo a produzir algum sentido. Acrescentou-se a esse conhecimento a descoberta dos power chords, e das articulações com ligado, slide e bend. Com essas ferramentas, eu começava a ser capaz de distinguir o que estava acontecendo nas músicas das bandas de hard rock/heavy metal da década de 1970. Nesse ponto, aquilo que eu conseguia distinguir e identificar ao ouvir auxiliava no processo de intuir modos de tocar. Reciprocamente, aquilo que eu era capaz de tocar me tornava mais capaz de ouvir algumas camadas, enquanto que outras permaneciam indistinguíveis no meio da massa sonora. Simplificando, até certo ponto, eu tocava o que eu conseguia ouvir e conseguia ouvir o que eu era capaz de tocar.

Tentarei ser mais minucioso sobre esse problema. Antes de tocar um instrumento, ou ter algum processo consciente de educação musical, a maioria das pessoas ouve música sem conseguir distinguir sua estrutura. Em geral nós apreendemos o ritmo corporalmente - em geral as crianças dançam, até que comecem as inibições que levam à vida adulta - e ouvimos a melodia principal, ainda mais na forma popular de canção, na qual esse elemento está na voz. Nesse sentido, a atenção das pessoas tende a se concentrar na figura carismática do cantor, tanto quanto no fato de que a melodia por ele cantada carrega palavras. Também é precária a capacidade de distinguir um instrumento do outro para, consequentemente, perceber a forma como eles se relacionam. Formal ou informalmente, faltam aí conceitos como melodia, harmonia, ritmo, timbre, dinâmica, tonalidade, etc. que poderiam auxiliar o ouvido a ir além daquilo que se destaca de forma evidente. 

Uma pessoa que, como eu, ouve alguns poucos estilos musicais preferencialmente aos demais, tende a incorporar em sua imaginação musical a forma como esses elementos soam nesses estilos, tanto mais quando ela não tem a consciência de que a música abarca todas essas dimensões estruturais. Consequentemente, depois de muito ouvir algumas bandas parecidas e tirar algumas músicas, eu já era capaz de identificar alguns padrões de digitação e articulação, alguns caminhos dentro da pentatônica, algumas progressões com power chord, etc. e isso ia me permitindo tirar mais músicas do mesmo estilo. Esse processo é algo que, até certo ponto, se retroalimenta, de modo que a cada nova música tirada partindo desse esquema de compreensão, eu ia aprendendo novos padrões e clichês e assim aumentando o repertório de técnicas e conhecimentos informais.

Nesse ponto, meu conhecimento de teoria musica era muito reduzido. Meu repertório rítmico era suficiente para tocar muita coisa relacionada a rock n’ roll (mas certamente não mais que isso). Quando à minha percepção, posso dizer que era razoável, mas estava bastante limitada a ritmos e melodias. Com isso quero dizer que minha capacidade de ouvir harmonia era muito precária. A consequência direta disso é que minha capacidade de tirar progressões de acorde (que não fosse de power chords) praticamente não evoluiu nada até que eu começasse a acessar o conhecimento formal da harmonia funcional. Sobre essa circunstância, é importante observar que o que se passa não é a substituição de uma percepção precária pelo conhecimento teórico formal. O que acontece é que ao discernir partes e funções, a teoria musical tem o poder de prover à percepção bases para começar a distinguir sons que antes não éramos capazes de distinguir. Desse modo, aquilo que antes era uma massa sonora misteriosa, passa a ser perceptível a ponto ficar claro quais acordes se sucedem e inclusive, quais tensões eles carregam. A esse aprendizado pude acrescentar a possibilidade de tocar os acordes pelo braço todo, visualizando os campos harmônicos inteiros em cada região, a partir da descoberta do sistema CAGED e da compreensão dos intervalos.

Nesse ponto, é preciso destacar que o processo autodidata/intuitivo chegou a um limite que dificilmente poderia ser ultrapassado apenas pela insistência nesse mesmo procedimento de aprendizagem. Para dar o passo seguinte, contei, então, com a avalanche de conhecimento disponível na internet. Pessoas como Nelson Faria, Ed Blues (Edson Vieira), João Bemol (Lê Santana), Mateus Starling, entre outros, prestam um serviço admirável à música brasileira, com a quantidade e qualidade de material gratuito que disponibilizam em seus canais no Youtube. Essa condição não existia quando comecei a tocar. O segundo fator de virada foi que, finalmente, decidi viver de música. Essa decisão foi fundamental porque a música em alto nível (que eu desejo um dia alcançar) demanda prioridade. Durante mais de dez anos, eu dividi meu aprendizado intuitivo com trabalho e estudos em outras áreas, do que resultaram sérias limitações de fundamento. O terceiro fator foi fazer aulas com bons professores de guitarra, que me apresentaram ferramentas que eu sequer imaginava a falta que faziam. Um último fator de virada que eu acrescentaria foi, talvez o mais importante, minha abertura para ouvir outros estilos, sobretudo o jazz e a música brasileira. Essa abertura se deu pela bossa nova, cuja complexidade harmônica inquietou minha curiosidade de modo que eu precisava entender o que estava acontecendo naquelas progressões sofisticadas entre acordes tão cheios de sons.

Esse caminho na direção da compreensão da teoria musical se deu, portanto, sobretudo pelo desejo de acessar algo que me auxiliasse a ouvir algo que eu não ouvia. O processo de me tornar capaz de compreender e de ouvir me possibilitou tocar o que eu não tocava. Ao superar limitações de compreensão, foram superadas limitações de percepção. Ainda restavam as limitações técnicas, para executar nas pontas dos dedos acordes com sétimas, nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, inversões; restava a dificuldade para visualizar tudo isso pelo braço todo. Todas essas novas dificuldades, interagindo entre si, criando resistências ao meu esforço, no processo lento de assimilação, foram acrescentando elementos à minha imaginação musical. Antes de concluir esse assunto, é preciso acrescentar apenas que quando digo que superei limitações no campo da percepção, compreensão e técnica, isso significa apenas que algumas dificuldades iniciais foram deixadas para trás. Na verdade, conforme melhoramos nossas aptidões e nosso entendimento, as dificuldades aumentam em vez de diminuir, uma vez que a quantidade de possibilidades que se abrem são quase infinitas. A grande diferença é que a dificuldade para tirar som de um acorde com pestana, muitas vezes é desestimulante, enquanto que a dificuldade para ser criativo, e para conseguir que as ferramentas e conhecimentos estudados se transformem em música é desafiadora e instiga o desejo de querer sempre ir mais longe.


sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Reflexões sobre o conceito de imaginação musical: me tornando guitarrista

     Ser um guitarrista é um processo (ele ainda está acontecendo) que começou pelo sonho de ser um guitarrista. Desse sonho fazia parte o desejo de me tornar algo próximo daquelas poucas imagens disponíveis dos guitarristas que eu assistia em vídeos e, principalmente, ser capaz de me expressar da forma como aquelas minhas primeiras referências na guitarra se expressavam. Ou, melhor dizendo, eu via no modo de tocar dos meus guitarristas preferidos, algo que me mostrava um caminho pelo qual eu poderia ser capaz de encontrar minha própria forma de expressão.

Durante um ou dois anos, eu toquei apenas no violão, mas nunca com uma técnica violonística. Desde o início eu tocava com palheta, fazia bend, fazia Power chord. Ao pegar num violão, minha imaginação queria se expressar por ele, mas o que havia nela era o rock e a abordagem da guitarra. Consequentemente, meu desejo esbarrava em uma série de frustrações. Outros obstáculos eram as insuficiências de conhecimento de técnica, de teoria e percepção musical. Esses obstáculos merecem reflexões mais detalhadas. Por enquanto, digo apenas que hoje sei que esses são impasses permanentes na vida de alguém que aspira tornar-se músico.

Entre limitações e possibilidades iniciais no contato com o instrumento, a imaginação musical, mais do que se expressar, vai se construindo, ou reconstruindo, na verdade. Isso porque, por mais que após alguma exposição a um ambiente musical, já existam na mente e no corpo alguns padrões melódicos e rítmicos, acredito que a imaginação musical não fica lá dentro parada, ou crescendo, existindo como música pura, até que seja posta para fora com o auxílio de um instrumento musical tocado adequadamente. Parece bastante plausível que seja ao lidar com a materialidade do instrumento, com a especificidade de sua afinação, do seu timbre, com o modo pelo qual se pode tocar escalas e acordes, somente ao produzir som é que a imaginação musical volta a existir e sugerir possibilidades de criação. Digo que volta a existir, porque antes de entrar em contato com um instrumento musical ela já havia existido, naquela criança que cantava o que ouvia, da forma particular e espontânea como ouvia. Nessa expressão ela produzia sons, lidava com a diferença entre o som real e o imaginado na mente; percebia as possibilidades de sua afinação, de seu ritmo, de seu timbre, etc. Na adolescência é bastante comum que essa expressão seja bloqueada por uma série de inibições que na maioria das vezes duram para o resto da vida. Com sorte, uma pessoa reencontra seu caminho musical. O que eu queria, portanto, era acessar possibilidades que me permitissem produzir sons que soassem como as musicas do rock dos anos 60 e 70. 

Foi aí que descobri a escala pentatônica. Talvez essa tenha sido a primeira ferramenta graças à qual eu pude começar a movimentar minha imaginação musical na direção que eu desejava. Primeiro, é preciso dizer que eu não entendia, durante muito tempo, o que era a escala pentatônica. Eu sequer aplicava, de forma espontânea, o famigerado shape:

                    


O modo como essa forma soava me parecia sem graça e além do mais, de digitação difícil, por causa das aberturas de um tom e meio na mesma corda, que nos primeiro anos eram bastante frustrantes para mim, mesmo minha mão não sendo pequena. Aprendi essa forma com um amigo, que aliás também não a executava com uma fluidez que motivasse a imaginação a incorporar essa ferramenta, como possibilidade interessante. Mesmo assim, criei um apego ao nome “escala pentatônica” (que não sei se eu entendia que era uma referência às suas cinco notas - provavelmente eu achava que ela tinha doze...), e de vez em quando, no meio de um improviso eu pensava “agora vou usar a pentatônica”. O que eu não sabia, antes de querer “usar a pentatônica”, é que o que eu, de forma espontânea, já estava fazendo antes, era a escala pentatônica.  

Intuitivamente, eu cheguei a esse shape:                                            

Novamente, eu não tinha ideia sobre o que é que eu estava fazendo, mas sabia pelo som, que sempre dava certo no rock e mesmo em rodas de coisas diferentes que eu me atrevia a tocar, e algumas vezes conseguia até enganar um pouco. Atualmente (e pessoalmente) eu diria que aquele shape anterior só funciona musicalmente se estiver relacionado aos outro quatro shapes baseados no sistema CAGED, o que demanda tempo de estudo e treinamento para a visualização das formas. Durante muito tempo eu não tive, por diversos motivos, nenhuma dessas duas condições.

Esse shape ao qual cheguei intuitivamente tinha algumas vantagens e algumas limitações. Vou expor sobre as vantagens. Esse shape, permite percorrer diagonalmente o braço, o que possibilita estar mais livre para criar ou reproduzir melodias da vida real. Ele funciona de uma forma que é muito simples fixar: são três notas numa corda, duas na corda seguinte e assim vai alternando. Não existe o problema do intervalo de um tom e meio na mesma corda. Quanto às três notas na mesma corda, jamais digitei usando três dedos. Sempre foi muito possível usar os dedos um e dois nas duas primeiras e fazer slide para a terceira. 

Os caminhos da escala pentatônica, percorrido a partir dessa digitação foram permitindo, conforme eu testava as possibilidades, rapidamente descobrir do que eram feitos muitos riffs de bandas como Deep Purple, Led Zeppelin e Black Sabbath. A escala pentatônica, mesmo que tocada mecanicamente, gradualmente trazia para as mãos as melodias que entravam pelos ouvidos. Nessa etapa, a imaginação musical ia se construindo a partir da conexão entre o que eu era capaz de ouvir e o que eu era capaz de tocar. Colocando de outra maneira, do ponto de vista da criação, era por essa lenta relação entre elementos tão distintos, ouvir e tocar, que evoluía aquilo que eu era capaz de imaginar, como base para a composição e para o improviso.


sábado, 23 de janeiro de 2021

Reflexões autobiográficas sobre o conceito de imaginação musical

     Ultimamente venho pensando em abordar um tema que tem surgido na mente: a imaginação musical. Decidi, então, começar a procurar algum contorno para o assunto, começando por uma reflexão sobre minha experiência musical pessoal, com todos os limites que inicialmente isso possa apresentar.

Imaginação musical, como eu a concebo, seria aquilo que movimenta e, possivelmente, faz com que surjam ideias musicais a partir de dentro do repertório de músicas com que tive contato ao longo da vida.

A partir dessa definição, penso em dois aspectos fundamentais que devem ser ressaltados. O primeiro é o afeto. Ou seja, é preciso estar consciente de que com cada música que me chegou aos ouvido, eu estabeleci um tipo diferente de relação. De algumas eu gostei, de outras eu não gostei; algumas eu deixei de ouvir depois de algum tempo, outras eu demorei muito para começar a gostar. Houve músicas que nem sequer me tocaram de nenhuma forma, que talvez tenham sido totalmente irrelevantes. Por outro lado, houve aquelas que se tornaram elementos centrais na formação da minha identidade pessoal em diversos períodos da minha vida. 

Parece que conexões estéticas foram se estabelecendo com algumas músicas, a partir das quais eu ia dizendo a mim mesmo, de uma certa forma, conforme ia ficando mais velho, quem eu era. No mesmo sentido, quanto às músicas que odiei, na mesma medida me construíram, constituindo de forma tão semi-consciente quanto no caso anterior, aquilo que eu não era, aquilo que eu não queria, e do que eu queria me diferenciar, não só musicalmente, mas enquanto um ser existente no mundo. Isso pode significar que aconteceu para mim uma conexão entre estética musical e ética pessoal.

O primeiro aspecto da imaginação musical, portanto, eu gostaria de afirmar que é o afeto. O segundo é a própria atividade de fazer música. Ou seja, é muito comum observar que desde muito cedo as crianças cantam. Claro que isso acontece na medida em que elas imitam algo daquilo que surge no ambiente musical que as rodeia (e na medida em que estabelecem conexões afetivas com as músicas). A primeira criação, me parece, surge da imperfeição da memória infantil, que muitas vezes irá decorar uma melodia só até certo ponto, para depois improvisar os trechos que não puderam ser lembrados. Em seguida parece que o que pode acontecer é que a criança descobre que ela pode cantar qualquer melodia que lhe venha à mente, e ficar horas improvisando livremente. Claro, o que ela não sabe é que essa liberdade ocorre tendo como base os referenciais do ambiente musical que lhe chega ao ouvido. Nesse processo as crianças muito cedo incorporam um determinado repertório de melodias e padrões rítmicos próprios ao seu contexto cultural. É aí que se incorpora também, no mundo ocidental moderno, implicitamente, os parâmetros do sistema tonal.

Bem, esse último argumento eu escrevi de forma objetiva, como se estivesse baseado em alguma pesquisa com crianças em geral, mas na verdade ele é a generalização de algumas lembranças de como eu tomei contato com a música e de observações feitas sem método. Vários aspectos são contraditórios e dariam boas discussões sobre condicionamento cultural. Nesse momento vou dar atenção ao que me levou à guitarra e como vai sendo produzida minha imaginação musical, na medida em que avança meu estudo desse instrumento.

É claro que como uma criança de classe média-média, eu estava exposto aos produtos mais evidentes produzidos e veiculados em massa pela indústria cultural. No meio da década de noventa esses meios de difusão musical eram as rádios, a televisão de rede aberta e as lojas de CD, apenas começando a existir. Isso significa que o acesso era bastante restrito comparativamente à diversidade disponível atualmente. Como se sabe, as rádios tocavam as músicas de artistas bancados por grandes gravadoras, dispostas a pagar o preço. Quanto às TVs abertas, acontecia o mesmo. Além disso, a qualidade do sinal e as caixas de som dos equipamentos disponíveis, nem sempre tinham uma qualidade razoável, o que sem dúvida prejudicava a apreciação. 

Foi decisivo, portanto, que em casa houvesse uma quantidade razoável de discos de vinil de rock, que eram do meu pai. As capas daqueles discos sempre me impressionaram. Traziam imagens fantásticas que instigavam a curiosidade para saber que música havia neles. Foi aí que eu comecei a ouvir rock dos anos 1960-1970. Esse tipo de música gerou uma adesão mais profunda e construção de identidade, enquanto que a recepção das músicas da moda eram superficiais e descartáveis, como aliás é provável que fosse o objetivo de seus próprios produtores.

Essas foram, portanto, as condições mais gerais para a criação do meu ambiente musical e, consequentemente, da minha imaginação musical. Quando comecei, aos 14 anos, no meio dos anos 1990 a tocar violão, o universo sonoro que eu tinha em mente era dominado pelo rock inglês e americano das décadas de 1960 e 1970. A princípio, eu queria tocar as músicas que eu gostava de ouvir e, desde muito cedo, compor músicas que se enquadrariam, necessariamente, dentro daquele conjunto de referências que eu acreditava ser a única forma possível de música boa. Essa “música de qualidade” pela qual eu me autodefinia como um adolescente capaz de estar além “daquilo que todo mundo ouve” - na época, pagode, axé e sertanejo - consistia em alguns poucos discos de vinil e fitas cassete de bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Yes, Genesis, ELP, The Who. Algum tempo depois eu e meu irmão já conseguíamos comprar alguns CDs, e acessamos Beatles, Black Sabbath, Deep Purple, Rush. Muitos anos se passaram até que houvesse abertura para alguma banda mais atual: Nirvana, Dream Theater, Metallica. Nesse período já era possível baixar músicas, mas muitas vezes com o objetivo de conhecer, para depois comprar o CD. Em pouco tempo essa prática perdeu completamente o sentido.

O fato, portanto, é que meu quadro de referências era absolutamente limitado ao que tínhamos em casa, ao que podíamos comprar e, inclusive ao que havia disponível nas lojas: com o início da internet, era possível ter informação sobre alguns discos cujo acesso parecia completamente impossível, por serem importados. Mas não se trata apenas desse limite de acesso. Assim que começamos (eu e meu irmão) a baixar músicas, muitos desses limites de acesso caíram. Entretanto, o limite daquilo que considerávamos música boa e música ruim era bastante rígido. 

Nesse sentido, a internet permitiu pesquisar sobre a existência de bandas dos anos 1970, que não constavam na coleção de discos do meu pai, e ao que me parece, talvez fossem ainda menos acessíveis à maior parte dos roqueiros brasileiros das décadas de 1970 e 1980. Bandas como King Crimson, Gentle Giant, Greatfull Dead, Frank Zappa. Algum tempo depois meu irmão começou a ouvir principalmente metal. Eu não acompanhei. Meu gosto foi cada vez mais em direção ao aparentemente interminável, e pretensiosamente imbatível universo do rock progressivo e experimental dos anos 1970. Nesse momento eu meu irmão estávamos nos distanciando não apenas em termo de rock, mas é bastante claro o como nossos respectivos gostos musicais são indicativos de que tomávamos direções muito diferentes na construção de nossas identidades.

Percebe-se, portanto, que no estágio em que se encontrava meu gosto musical e minha identidade, aí já na primeira década dos anos 2000, mesmo o desejo de descobrir coisas novas permanecia restrito ao rock e aos anos 1970. A música brasileira e o jazz, estavam fora que questão. Não faziam parte da minha imaginação musical.


sábado, 7 de janeiro de 2017

Notas sinceras

Acordei sem banho, isso vem primeiro. Minha noite foi bem dormida. Assim que fechei a porta do quarto ele se tornou meu mundo, o único existente. Respirei fundo e quebrei na mente o impulso diabólico de, por todo o tempo, colocar coisas na cabeça, retirar coisa da cabeça. Por alguns minutos me concentrei nas partículas invisíveis das quais são feitas as coisas e os pensamentos. Depois agradeci aos tijolos e às portas de madeira, ao asfalto lá em baixo na rua, e finalmente, bem fraquinho ao solo e à água que passam debaixo dele. Todas essas coisas sou eu mesmo, no fim. Ninguém me deve nada. Nem respeito, nem consideração, nem gratidão, nem fidelidade, nem reciprocidade de nenhuma forma. Ninguém me deve nada. Quando eu me esqueço disso não corro nenhum risco de ser livre. Me amarro pelo ressentimento, pelo despeito e pela expectativa a tudo aquilo que independe de mim mais ainda que minhas próprias ações, elas mesmas imponderáveis, determinadas, do começo ao fim, pelo meu nascimento.
Acordei acariciado por incômodos antigos e com vontade de consertar o mundo com conhecimento. O conhecimento estava em mim e de mim ele transbordava afogando toda a humanidade em pacífica beatitude e fraternidade. Depois eu pensei "bobagem!" e tomei meu café acompanhado de pão com manteiga. Até quando eu terei café e pão com manteiga? Não importa. Quando não tiver eu lidarei com o fato de não ter e disso algo de bom surgirá, sem dúvida. Enquanto tem, tem. Ótimo.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

As folhas verdes no chão, o álcool e os campos de concentração

É como se fosse uma rampa de vidro pela qual vou tentando subir rastejando. Não tem onde pegar, desliza. De vez em quando jogam lá de cima um pouco de óleo, e daí que não dá mesmo pra subir. Subir pra que? Subir pra onde? Bem no meio dela tem um eixo, como os que tem nas gangorras de parques para crianças. Então quando a subida passa pela suposta metade a coisa vira e de repente percebo com espanto que estou descendo. Descendo, subindo, que diferença faz? Que mal tem?
Isso nunca existiu na vida real. O que existiu, que tinha isso por dentro, como se fosse o esqueleto de um grande animal, foi uma situação cotidiana e ela, por sua vez, era o próprio animal. O animal era o seguinte: entrei no ônibus, novamente - num certo nível, infinitamente - e vi que por todo o chão havia pipocas espalhadas e pisadas. Imaginei que alguém abriu o pacote com muita força, rasgou ele inteiro. Na curva, o ônibus colaborou pra que caísse tudo no chão. Algumas pessoas devem ter sorrido, algumas devem ter rido por dentro, outras fingiram que não viram pra não se comprometer, outras fingiram que não viram pra não constranger aquela pessoa incapaz de abrir um saco de pipocas dentro do ônibus. Eu desconfio até, que ainda algumas pessoas olharam com ódio por terem de lidar com um acontecimento inesperado desses, inconveniente. As pessoas iam entrando no ônibus e pisando nas pipocas, naturalmente.  
Eu ia olhando as árvores que gritavam contra o azul do céu, novamente.
Desci do ônibus e vi dois meninos jogando bola. O pai era o gandula. "Uma vez fui eu que joguei bola assim e o tempo já estava passando sem que eu notasse", eu pensei.
De todo modo, era segunda-feira: é proibido viver, todo mundo sabe disso. "Melhor esperar mais dois ou três dias", mas quando chegar, finalmente, eu não vou querer mais, é claro. Será sempre o Mesmo, ou será sempre o mesmo Acontecer-Desgovernado tendendo ao Mesmo-Mesmo. O Tudo coincidindo com o Nada, a Qualquer-Coisa coincidindo com a Coisa-Obviamente-Provável.
Bom, por onde que a gente começa de novo, então? Pode ser escrevendo, nesse caso. "Pra que?" eu poderia pensar. Qualquer coisa que eu escreva só vai reforçar a ideia de que eu sou uma coisa que precisa tornar-se outra. Claro, isso acontece, a princípio, porque vi muito filme americano. O fato, no entanto, é que todo mundo viu muito filme americano, a ponto de que, num certo nível, o que parece é, inclusive um pouco até quase o fundo. Quase...
Às sete da manhã eu acordei antes do despertador. Acordei pacificamente até que, alguns segundos depois me lembrei dos pesadelos. Eram pesadelos cheios de sangue e coisas mal encaixadas. Fazer o que... É preciso sair da cama. "Que eu vou fazer hoje?" "Saber, enfim, que eu sou o que eu sou, de todo modo, é libertador", pensei, em seguida "não vou ser outra coisa. Não é possível e não resolveria nada mesmo. Tudo está bem." Isso, é claro, num certo nível. Tem momentos da vida que eu acredito que se eu entendo o que é O Certo, esse certo se faz por consequência e, além do mais, na totalidade. Criancice. Isso quer dizer, então, que em outro lugar, no estômago, eu acho, eu continuava acreditando na necessidade de reformar uma coisa aqui, outra ali, fazer isso e aquilo de um jeito mais bem feito, e aí sim! Aí sim tudo ficaria sob controle. Essas convicções saem do estômago e se irradiam pelo corpo como uma agressão misteriosa. Elas existem, sim, é preciso reconhecer, embora elas, atualmente, batam no Eu profundo e retornem, momentaneamente, ao ponto de onde vieram. Ficam lá, pacificas, enquanto o Eu profundo se expande. Depois acabo me distraindo porque eram sete da manhã, céu azul. Os carros passavam com muita velocidade, os ônibus cheios de gentes. Um motorista teve um segundo de vacilo e não viu o sinal esverdear-se. O motorista de trás esmurrou a buzina como se estivesse se vingando dos próprios pais que o puseram, sem seu consentimento, nesse mundo e, consequentemente, no meio do trânsito que leva Para-lugar-nenhum.
Que eu faço agora? "Eu fiz meu melhor e ele não foi o bastante". Será sempre isso? Sem dúvida, enquanto o parâmetro de avaliação do Melhor e do Bastante forem... [será que eu devia ter inventado alguma coisa pra completar esse argumento de forma coerente?]. Ainda tem o Fazer... "eu fiz"...
A não ser que se queira dar uma de bonitinho, é preciso entender - e aceitar - que sempre acaba no meio. Aliás, sempre começa no meio.
Desci do ônibus e voltei pra casa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

O atravessamento

Ela ia de um lado para outro, ajeitava uma coisa aqui, outra ali. Passava na frente da televisão, ria de qualquer bobagem, permanecia impassível diante de qualquer tragédia. Depois sentia vazio, sentia que sua vida não tinha sentido e não sabia porque chorava e sofria de dor de cabeça, e então "preciso me acalmar", dizia. Esforço inútil: novamente estava na frente da televisão vendo algum imbecil fazer gracinhas porque "não dá pra levar a vida tão a sério", e depois, inexplicavelmente vinha o desespero. Pegava um pano, limpava coisas que já estavam limpas. Impossível: o tempo é muito grande para que se tente matá-lo assim tão futilmente. Que perturbação ver uma pessoa bater-se de forma tão estúpida... O próprio Buda acabaria rangendo os dentes e desfazendo seu lótus para rolar no colchão até o amanhecer.
Foi então que percebi, finalmente: ela não existe. Não existe, é o mesmo que nada. E a velhinha que passa os dias sentada na cadeira em frente à casa no fim da rua? Acena para os passantes, informa-lhes gratuitamente que faz frio ou calor... Ela não existe, sem dúvida. Eu existo? Nada existe. Quanta paz nessa nova descoberta!
Logo em seguida, um bebê começou a chorar. Ele não parava. "Ele não vai parar", disse a mãe que o segurava nos braços. O pai ouvia com expressão de quem teve o cérebro comido por aquele choro insistente. O choro continuou, enchendo de existência aquele nada tão desejado. O choro do bebê, um cachorro latindo longe na madrugada, a gastrite: o nada foi apenas um sonho breve, afinal.
Mas tudo bem.
Eu já estava cansado depois de andar tanto tempo debaixo de sol sem que nada acontecesse. Resolvi parar em uma praça, que estava quase vazia e tinha bastante árvores fazendo sombra. Me sentei em um dos bancos e logo meu olhar se fixou em uma das pedras da calçada. Aos poucos o silêncio começou a preencher minha mente e os contornos da pedra começaram a se dissolver, ao mesmo tempo que o aspecto visível de sua textura se tornou mais nítido.
Em seguida, uma voz surgiu e minha percepção do som das palavras, da intensidade com que elas eram ditas e depois iam sumindo, fez parecer que essas palavras ditas eram análogas às pedras. Ou seja, elas eram como bolhas que iam se enchendo sozinha no ar, cresciam e estouravam. "As letras são um delírio completo", pensei. As palavras continuavam, seus limites primeiro eram claros, depois se desfaziam. Era uma mulher brincando com uma menina no balanço da praça. Ela dizia para a menina frases alegres repetidas, que eram como pedras de calçada.
Claro, isso acontece porque os limites das coisas, sua extensão, sua textura, só são óbvios quando eu olho distraidamente para as coisas. Olho distraidamente, enquanto penso em outras coisas. Superficialmente, tenho certeza de que tudo é o que é, como sempre foi. Depois, no entanto, de respirar fundo, encontrar os silêncios da mente, alinhar minha coluna perpendicularmente entre o chão e o céu, essas coisas, as pedras e as palavras, passaram a se apresentar com seus limites dissolvidos. Uma pedra e outra pedra, o mato que crescia entre suas frestas, as palavras da moça, a própria moça, o ar... havia uma continuidade entre essas coisas todas. Onde acabava uma e começava outra, existia apenas um contorno esfumado, poroso.
"Isso resolve o que?", pensei. Nada. Então tudo novamente ficou certo.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Anotações antigas de leituras esquecidas

Outro dia eu encontrei, no meio das minhas coisas, anotações feitas há exatamente um ano atrás. Como não poderia deixar de ser, algumas convicções que naquele momento pareciam definitivas se desfizeram. Algumas previsões, por outro lado, acabaram se tornando, espantosamente, a realidade.

"Enquanto o mundo segue consumindo-se a si mesmo levado por uma espécie notadamente perversa de loucura, eu me permito, mais uma vez, sentar à sombra, em meditação. Daqui a não muito tempo haverá, sem dúvida, quem diga que eu estou me perdendo.
Abri o livro e li algumas páginas.
Que surpresa eu tive quando notei que minha leitura das angústias daquele Mathieu complexo e prisioneiro de si mesmo, saído da cabeça de Jean-Paul Sartre, dessa vez não chegou a me afetar. Interrompi a leitura e fiquei olhando o mar enquanto tentava entender qual a razão para que agora, sentado na areia, debaixo de um coqueiro isolado, a beleza trágica daquela literatura perigosa não se convertesse na dor física de estar diante de um beco sem saída. Sem saída apesar de se saber muito bem do que ele é feito. Fechava o livro e seguia andando mais um pouco. A cada parada retomava a leitura e cada vez mais compreendia que, enfim, eu deixara de ser Mathieu, e A idade da razão deixara de ser uma narrativa sobre meu próprio destino.
Minha satisfação aumentou ainda mais quando, algumas páginas depois, chegou a vez do próprio Mathieu superar o emaranhado de forças obscuras que o condenavam à sua situação aparentemente inevitável. Esse acontecimento se deu num cabaret em que estavam o personagem e seus amigos. Entre eles, pontuando a amizade, existiam ódios velados, constrangimentos, ressentimentos, que constituíam minúsculas mas intransponíveis distâncias.
Quando Mathieu e Ivitch finalmente ficaram a sós na mesa, iniciou-se uma daquelas conversas complexas em que nenhuma das partes é capaz de ir direto ao assunto. Ivitch, já bêbada, começou a demonstrar implicâncias com a mulher sentada à mesa vizinha e, para provocá-la, pegou um canivete com o qual fez um corte profundo na palma da própria mão.
Ela deixou que o sangue escorresse e aproveitou também para ridicularizar Mathieu, ao ver seu desespero diante da atitude sem explicação. Impelido pela situação de absurdo generalizado, Mathieu então tomou de Ivitch o canivete para cravá-lo, dessa vez, em sua própria mão. Nesse ponto Sartre acrescenta que, nesse momento ocorreu no bar uma grande agitação decorrente do escândalo causado na "opinião pública" devido às atitudes encenadas por seus personagens. "Está vendo! Não há nada de especial, qualquer um pode fazê-lo!", gritou Mathieu mostrando a mão quase atravessada pela lamina. Agora quem estava em choque era Ivitch, "por que você fez isso?!" dizia, enquanto o ajudava a retirar o canivete. O sangue se misturava e, por fim, os dois riam. Em meio àquela atitude extrema e irrefletida, todas as complexidades e rancores se desfizeram. Ao se verem, por um instante, liberados, pela exposição ao absurdo, dos constrangimentos - que na verdade são os elementos definidores das personalidades individuais no estado de normalidade - fez-se, espontaneamente o riso como expressão da descoberta de algo profundo e comum.
Eu ainda não sei o que virá depois disso, mas se existe equivalente dessa construção literária na vida real, eu diria que, o Mundo tende a pressionar o novo estado de espírito de volta aos limites anteriores à epifania, neutralizando as potência transformadoras por ela desencadeadas. Com isso, aquele que se acreditava finalmente livre se verá mais uma vez frustrado, - ao ver retornarem os ódios e ressentimentos necessários à manutenção das posições que foi levado a ocupar em sua existência social - até que seja capaz de ir realmente mais longe."