terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Reflexões sobre o conceito de imaginação musical: ouvir e tocar

 3- Ouvir e tocar


A escala pentatônica, portanto, ao mesmo tempo em que permitia tocar algumas melodias simples, ia modelando minha percepção e minha compreensão inicial de como eu poderia juntar notas de modo a produzir algum sentido. Acrescentou-se a esse conhecimento a descoberta dos power chords, e das articulações com ligado, slide e bend. Com essas ferramentas, eu começava a ser capaz de distinguir o que estava acontecendo nas músicas das bandas de hard rock/heavy metal da década de 1970. Nesse ponto, aquilo que eu conseguia distinguir e identificar ao ouvir auxiliava no processo de intuir modos de tocar. Reciprocamente, aquilo que eu era capaz de tocar me tornava mais capaz de ouvir algumas camadas, enquanto que outras permaneciam indistinguíveis no meio da massa sonora. Simplificando, até certo ponto, eu tocava o que eu conseguia ouvir e conseguia ouvir o que eu era capaz de tocar.

Tentarei ser mais minucioso sobre esse problema. Antes de tocar um instrumento, ou ter algum processo consciente de educação musical, a maioria das pessoas ouve música sem conseguir distinguir sua estrutura. Em geral nós apreendemos o ritmo corporalmente - em geral as crianças dançam, até que comecem as inibições que levam à vida adulta - e ouvimos a melodia principal, ainda mais na forma popular de canção, na qual esse elemento está na voz. Nesse sentido, a atenção das pessoas tende a se concentrar na figura carismática do cantor, tanto quanto no fato de que a melodia por ele cantada carrega palavras. Também é precária a capacidade de distinguir um instrumento do outro para, consequentemente, perceber a forma como eles se relacionam. Formal ou informalmente, faltam aí conceitos como melodia, harmonia, ritmo, timbre, dinâmica, tonalidade, etc. que poderiam auxiliar o ouvido a ir além daquilo que se destaca de forma evidente. 

Uma pessoa que, como eu, ouve alguns poucos estilos musicais preferencialmente aos demais, tende a incorporar em sua imaginação musical a forma como esses elementos soam nesses estilos, tanto mais quando ela não tem a consciência de que a música abarca todas essas dimensões estruturais. Consequentemente, depois de muito ouvir algumas bandas parecidas e tirar algumas músicas, eu já era capaz de identificar alguns padrões de digitação e articulação, alguns caminhos dentro da pentatônica, algumas progressões com power chord, etc. e isso ia me permitindo tirar mais músicas do mesmo estilo. Esse processo é algo que, até certo ponto, se retroalimenta, de modo que a cada nova música tirada partindo desse esquema de compreensão, eu ia aprendendo novos padrões e clichês e assim aumentando o repertório de técnicas e conhecimentos informais.

Nesse ponto, meu conhecimento de teoria musica era muito reduzido. Meu repertório rítmico era suficiente para tocar muita coisa relacionada a rock n’ roll (mas certamente não mais que isso). Quando à minha percepção, posso dizer que era razoável, mas estava bastante limitada a ritmos e melodias. Com isso quero dizer que minha capacidade de ouvir harmonia era muito precária. A consequência direta disso é que minha capacidade de tirar progressões de acorde (que não fosse de power chords) praticamente não evoluiu nada até que eu começasse a acessar o conhecimento formal da harmonia funcional. Sobre essa circunstância, é importante observar que o que se passa não é a substituição de uma percepção precária pelo conhecimento teórico formal. O que acontece é que ao discernir partes e funções, a teoria musical tem o poder de prover à percepção bases para começar a distinguir sons que antes não éramos capazes de distinguir. Desse modo, aquilo que antes era uma massa sonora misteriosa, passa a ser perceptível a ponto ficar claro quais acordes se sucedem e inclusive, quais tensões eles carregam. A esse aprendizado pude acrescentar a possibilidade de tocar os acordes pelo braço todo, visualizando os campos harmônicos inteiros em cada região, a partir da descoberta do sistema CAGED e da compreensão dos intervalos.

Nesse ponto, é preciso destacar que o processo autodidata/intuitivo chegou a um limite que dificilmente poderia ser ultrapassado apenas pela insistência nesse mesmo procedimento de aprendizagem. Para dar o passo seguinte, contei, então, com a avalanche de conhecimento disponível na internet. Pessoas como Nelson Faria, Ed Blues (Edson Vieira), João Bemol (Lê Santana), Mateus Starling, entre outros, prestam um serviço admirável à música brasileira, com a quantidade e qualidade de material gratuito que disponibilizam em seus canais no Youtube. Essa condição não existia quando comecei a tocar. O segundo fator de virada foi que, finalmente, decidi viver de música. Essa decisão foi fundamental porque a música em alto nível (que eu desejo um dia alcançar) demanda prioridade. Durante mais de dez anos, eu dividi meu aprendizado intuitivo com trabalho e estudos em outras áreas, do que resultaram sérias limitações de fundamento. O terceiro fator foi fazer aulas com bons professores de guitarra, que me apresentaram ferramentas que eu sequer imaginava a falta que faziam. Um último fator de virada que eu acrescentaria foi, talvez o mais importante, minha abertura para ouvir outros estilos, sobretudo o jazz e a música brasileira. Essa abertura se deu pela bossa nova, cuja complexidade harmônica inquietou minha curiosidade de modo que eu precisava entender o que estava acontecendo naquelas progressões sofisticadas entre acordes tão cheios de sons.

Esse caminho na direção da compreensão da teoria musical se deu, portanto, sobretudo pelo desejo de acessar algo que me auxiliasse a ouvir algo que eu não ouvia. O processo de me tornar capaz de compreender e de ouvir me possibilitou tocar o que eu não tocava. Ao superar limitações de compreensão, foram superadas limitações de percepção. Ainda restavam as limitações técnicas, para executar nas pontas dos dedos acordes com sétimas, nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, inversões; restava a dificuldade para visualizar tudo isso pelo braço todo. Todas essas novas dificuldades, interagindo entre si, criando resistências ao meu esforço, no processo lento de assimilação, foram acrescentando elementos à minha imaginação musical. Antes de concluir esse assunto, é preciso acrescentar apenas que quando digo que superei limitações no campo da percepção, compreensão e técnica, isso significa apenas que algumas dificuldades iniciais foram deixadas para trás. Na verdade, conforme melhoramos nossas aptidões e nosso entendimento, as dificuldades aumentam em vez de diminuir, uma vez que a quantidade de possibilidades que se abrem são quase infinitas. A grande diferença é que a dificuldade para tirar som de um acorde com pestana, muitas vezes é desestimulante, enquanto que a dificuldade para ser criativo, e para conseguir que as ferramentas e conhecimentos estudados se transformem em música é desafiadora e instiga o desejo de querer sempre ir mais longe.


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