sábado, 23 de janeiro de 2021

Reflexões autobiográficas sobre o conceito de imaginação musical

     Ultimamente venho pensando em abordar um tema que tem surgido na mente: a imaginação musical. Decidi, então, começar a procurar algum contorno para o assunto, começando por uma reflexão sobre minha experiência musical pessoal, com todos os limites que inicialmente isso possa apresentar.

Imaginação musical, como eu a concebo, seria aquilo que movimenta e, possivelmente, faz com que surjam ideias musicais a partir de dentro do repertório de músicas com que tive contato ao longo da vida.

A partir dessa definição, penso em dois aspectos fundamentais que devem ser ressaltados. O primeiro é o afeto. Ou seja, é preciso estar consciente de que com cada música que me chegou aos ouvido, eu estabeleci um tipo diferente de relação. De algumas eu gostei, de outras eu não gostei; algumas eu deixei de ouvir depois de algum tempo, outras eu demorei muito para começar a gostar. Houve músicas que nem sequer me tocaram de nenhuma forma, que talvez tenham sido totalmente irrelevantes. Por outro lado, houve aquelas que se tornaram elementos centrais na formação da minha identidade pessoal em diversos períodos da minha vida. 

Parece que conexões estéticas foram se estabelecendo com algumas músicas, a partir das quais eu ia dizendo a mim mesmo, de uma certa forma, conforme ia ficando mais velho, quem eu era. No mesmo sentido, quanto às músicas que odiei, na mesma medida me construíram, constituindo de forma tão semi-consciente quanto no caso anterior, aquilo que eu não era, aquilo que eu não queria, e do que eu queria me diferenciar, não só musicalmente, mas enquanto um ser existente no mundo. Isso pode significar que aconteceu para mim uma conexão entre estética musical e ética pessoal.

O primeiro aspecto da imaginação musical, portanto, eu gostaria de afirmar que é o afeto. O segundo é a própria atividade de fazer música. Ou seja, é muito comum observar que desde muito cedo as crianças cantam. Claro que isso acontece na medida em que elas imitam algo daquilo que surge no ambiente musical que as rodeia (e na medida em que estabelecem conexões afetivas com as músicas). A primeira criação, me parece, surge da imperfeição da memória infantil, que muitas vezes irá decorar uma melodia só até certo ponto, para depois improvisar os trechos que não puderam ser lembrados. Em seguida parece que o que pode acontecer é que a criança descobre que ela pode cantar qualquer melodia que lhe venha à mente, e ficar horas improvisando livremente. Claro, o que ela não sabe é que essa liberdade ocorre tendo como base os referenciais do ambiente musical que lhe chega ao ouvido. Nesse processo as crianças muito cedo incorporam um determinado repertório de melodias e padrões rítmicos próprios ao seu contexto cultural. É aí que se incorpora também, no mundo ocidental moderno, implicitamente, os parâmetros do sistema tonal.

Bem, esse último argumento eu escrevi de forma objetiva, como se estivesse baseado em alguma pesquisa com crianças em geral, mas na verdade ele é a generalização de algumas lembranças de como eu tomei contato com a música e de observações feitas sem método. Vários aspectos são contraditórios e dariam boas discussões sobre condicionamento cultural. Nesse momento vou dar atenção ao que me levou à guitarra e como vai sendo produzida minha imaginação musical, na medida em que avança meu estudo desse instrumento.

É claro que como uma criança de classe média-média, eu estava exposto aos produtos mais evidentes produzidos e veiculados em massa pela indústria cultural. No meio da década de noventa esses meios de difusão musical eram as rádios, a televisão de rede aberta e as lojas de CD, apenas começando a existir. Isso significa que o acesso era bastante restrito comparativamente à diversidade disponível atualmente. Como se sabe, as rádios tocavam as músicas de artistas bancados por grandes gravadoras, dispostas a pagar o preço. Quanto às TVs abertas, acontecia o mesmo. Além disso, a qualidade do sinal e as caixas de som dos equipamentos disponíveis, nem sempre tinham uma qualidade razoável, o que sem dúvida prejudicava a apreciação. 

Foi decisivo, portanto, que em casa houvesse uma quantidade razoável de discos de vinil de rock, que eram do meu pai. As capas daqueles discos sempre me impressionaram. Traziam imagens fantásticas que instigavam a curiosidade para saber que música havia neles. Foi aí que eu comecei a ouvir rock dos anos 1960-1970. Esse tipo de música gerou uma adesão mais profunda e construção de identidade, enquanto que a recepção das músicas da moda eram superficiais e descartáveis, como aliás é provável que fosse o objetivo de seus próprios produtores.

Essas foram, portanto, as condições mais gerais para a criação do meu ambiente musical e, consequentemente, da minha imaginação musical. Quando comecei, aos 14 anos, no meio dos anos 1990 a tocar violão, o universo sonoro que eu tinha em mente era dominado pelo rock inglês e americano das décadas de 1960 e 1970. A princípio, eu queria tocar as músicas que eu gostava de ouvir e, desde muito cedo, compor músicas que se enquadrariam, necessariamente, dentro daquele conjunto de referências que eu acreditava ser a única forma possível de música boa. Essa “música de qualidade” pela qual eu me autodefinia como um adolescente capaz de estar além “daquilo que todo mundo ouve” - na época, pagode, axé e sertanejo - consistia em alguns poucos discos de vinil e fitas cassete de bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Yes, Genesis, ELP, The Who. Algum tempo depois eu e meu irmão já conseguíamos comprar alguns CDs, e acessamos Beatles, Black Sabbath, Deep Purple, Rush. Muitos anos se passaram até que houvesse abertura para alguma banda mais atual: Nirvana, Dream Theater, Metallica. Nesse período já era possível baixar músicas, mas muitas vezes com o objetivo de conhecer, para depois comprar o CD. Em pouco tempo essa prática perdeu completamente o sentido.

O fato, portanto, é que meu quadro de referências era absolutamente limitado ao que tínhamos em casa, ao que podíamos comprar e, inclusive ao que havia disponível nas lojas: com o início da internet, era possível ter informação sobre alguns discos cujo acesso parecia completamente impossível, por serem importados. Mas não se trata apenas desse limite de acesso. Assim que começamos (eu e meu irmão) a baixar músicas, muitos desses limites de acesso caíram. Entretanto, o limite daquilo que considerávamos música boa e música ruim era bastante rígido. 

Nesse sentido, a internet permitiu pesquisar sobre a existência de bandas dos anos 1970, que não constavam na coleção de discos do meu pai, e ao que me parece, talvez fossem ainda menos acessíveis à maior parte dos roqueiros brasileiros das décadas de 1970 e 1980. Bandas como King Crimson, Gentle Giant, Greatfull Dead, Frank Zappa. Algum tempo depois meu irmão começou a ouvir principalmente metal. Eu não acompanhei. Meu gosto foi cada vez mais em direção ao aparentemente interminável, e pretensiosamente imbatível universo do rock progressivo e experimental dos anos 1970. Nesse momento eu meu irmão estávamos nos distanciando não apenas em termo de rock, mas é bastante claro o como nossos respectivos gostos musicais são indicativos de que tomávamos direções muito diferentes na construção de nossas identidades.

Percebe-se, portanto, que no estágio em que se encontrava meu gosto musical e minha identidade, aí já na primeira década dos anos 2000, mesmo o desejo de descobrir coisas novas permanecia restrito ao rock e aos anos 1970. A música brasileira e o jazz, estavam fora que questão. Não faziam parte da minha imaginação musical.


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