tag:blogger.com,1999:blog-47201488660987131292024-02-18T17:56:19.699-08:00Movimentos Involuntários da Mentemovimentos involuntários da menteUnknownnoreply@blogger.comBlogger30125tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-82576748431503203362021-02-09T17:02:00.002-08:002021-02-23T11:53:20.434-08:00Reflexões sobre o conceito de imaginação musical: ouvir e tocar<p> <span style="font-size: large;">3- Ouvir e tocar</span></p><p><br /></p><p><span style="white-space: pre;"> </span><span style="font-size: large;">A escala pentatônica, portanto, ao mesmo tempo em que permitia tocar algumas melodias simples, ia modelando minha percepção e minha compreensão inicial de como eu poderia juntar notas de modo a produzir algum sentido. Acrescentou-se a esse conhecimento a descoberta dos power chords, e das articulações com ligado, slide e bend. Com essas ferramentas, eu começava a ser capaz de distinguir o que estava acontecendo nas músicas das bandas de hard rock/heavy metal da década de 1970. Nesse ponto, aquilo que eu conseguia distinguir e identificar ao ouvir auxiliava no processo de intuir modos de tocar. Reciprocamente, aquilo que eu era capaz de tocar me tornava mais capaz de ouvir algumas camadas, enquanto que outras permaneciam indistinguíveis no meio da massa sonora. Simplificando, até certo ponto, eu tocava o que eu conseguia ouvir e conseguia ouvir o que eu era capaz de tocar.</span></p><p><span style="font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Tentarei ser mais minucioso sobre esse problema. Antes de tocar um instrumento, ou ter algum processo consciente de educação musical, a maioria das pessoas ouve música sem conseguir distinguir sua estrutura. Em geral nós apreendemos o ritmo corporalmente - em geral as crianças dançam, até que comecem as inibições que levam à vida adulta - e ouvimos a melodia principal, ainda mais na forma popular de canção, na qual esse elemento está na voz. Nesse sentido, a atenção das pessoas tende a se concentrar na figura carismática do cantor, tanto quanto no fato de que a melodia por ele cantada carrega palavras. Também é precária a capacidade de distinguir um instrumento do outro para, consequentemente, perceber a forma como eles se relacionam. Formal ou informalmente, faltam aí conceitos como melodia, harmonia, ritmo, timbre, dinâmica, tonalidade, etc. que poderiam auxiliar o ouvido a ir além daquilo que se destaca de forma evidente. </span></p><p><span style="font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Uma pessoa que, como eu, ouve alguns poucos estilos musicais preferencialmente aos demais, tende a incorporar em sua imaginação musical a forma como esses elementos soam nesses estilos, tanto mais quando ela não tem a consciência de que a música abarca todas essas dimensões estruturais. Consequentemente, depois de muito ouvir algumas bandas parecidas e tirar algumas músicas, eu já era capaz de identificar alguns padrões de digitação e articulação, alguns caminhos dentro da pentatônica, algumas progressões com power chord, etc. e isso ia me permitindo tirar mais músicas do mesmo estilo. Esse processo é algo que, até certo ponto, se retroalimenta, de modo que a cada nova música tirada partindo desse esquema de compreensão, eu ia aprendendo novos padrões e clichês e assim aumentando o repertório de técnicas e conhecimentos informais.</span></p><p><span style="font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nesse ponto, meu conhecimento de teoria musica era muito reduzido. Meu repertório rítmico era suficiente para tocar muita coisa relacionada a rock n’ roll (mas certamente não mais que isso). Quando à minha percepção, posso dizer que era razoável, mas estava bastante limitada a ritmos e melodias. Com isso quero dizer que minha capacidade de ouvir harmonia era muito precária. A consequência direta disso é que minha capacidade de tirar progressões de acorde (que não fosse de power chords) praticamente não evoluiu nada até que eu começasse a acessar o conhecimento formal da harmonia funcional. Sobre essa circunstância, é importante observar que o que se passa não é a substituição de uma percepção precária pelo conhecimento teórico formal. O que acontece é que ao discernir partes e funções, a teoria musical tem o poder de prover à percepção bases para começar a distinguir sons que antes não éramos capazes de distinguir. Desse modo, aquilo que antes era uma massa sonora misteriosa, passa a ser perceptível a ponto ficar claro quais acordes se sucedem e inclusive, quais tensões eles carregam. A esse aprendizado pude acrescentar a possibilidade de tocar os acordes pelo braço todo, visualizando os campos harmônicos inteiros em cada região, a partir da descoberta do sistema CAGED e da compreensão dos intervalos.</span></p><p><span style="font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Nesse ponto, é preciso destacar que o processo autodidata/intuitivo chegou a um limite que dificilmente poderia ser ultrapassado apenas pela insistência nesse mesmo procedimento de aprendizagem. Para dar o passo seguinte, contei, então, com a avalanche de conhecimento disponível na internet. Pessoas como Nelson Faria, Ed Blues (Edson Vieira), João Bemol (Lê Santana), Mateus Starling, entre outros, prestam um serviço admirável à música brasileira, com a quantidade e qualidade de material gratuito que disponibilizam em seus canais no Youtube. Essa condição não existia quando comecei a tocar. O segundo fator de virada foi que, finalmente, decidi viver de música. Essa decisão foi fundamental porque a música em alto nível (que eu desejo um dia alcançar) demanda prioridade. Durante mais de dez anos, eu dividi meu aprendizado intuitivo com trabalho e estudos em outras áreas, do que resultaram sérias limitações de fundamento. O terceiro fator foi fazer aulas com bons professores de guitarra, que me apresentaram ferramentas que eu sequer imaginava a falta que faziam. Um último fator de virada que eu acrescentaria foi, talvez o mais importante, minha abertura para ouvir outros estilos, sobretudo o jazz e a música brasileira. Essa abertura se deu pela bossa nova, cuja complexidade harmônica inquietou minha curiosidade de modo que eu precisava entender o que estava acontecendo naquelas progressões sofisticadas entre acordes tão cheios de sons.</span></p><p><span style="font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Esse caminho na direção da compreensão da teoria musical se deu, portanto, sobretudo pelo desejo de acessar algo que me auxiliasse a ouvir algo que eu não ouvia. O processo de me tornar capaz de compreender e de ouvir me possibilitou tocar o que eu não tocava. Ao superar limitações de compreensão, foram superadas limitações de percepção. Ainda restavam as limitações técnicas, para executar nas pontas dos dedos acordes com sétimas, nonas, décimas primeiras, décimas terceiras, inversões; restava a dificuldade para visualizar tudo isso pelo braço todo. Todas essas novas dificuldades, interagindo entre si, criando resistências ao meu esforço, no processo lento de assimilação, foram acrescentando elementos à minha imaginação musical. Antes de concluir esse assunto, é preciso acrescentar apenas que quando digo que superei limitações no campo da percepção, compreensão e técnica, isso significa apenas que algumas dificuldades iniciais foram deixadas para trás. Na verdade, conforme melhoramos nossas aptidões e nosso entendimento, as dificuldades aumentam em vez de diminuir, uma vez que a quantidade de possibilidades que se abrem são quase infinitas. A grande diferença é que a dificuldade para tirar som de um acorde com pestana, muitas vezes é desestimulante, enquanto que a dificuldade para ser criativo, e para conseguir que as ferramentas e conhecimentos estudados se transformem em música é desafiadora e instiga o desejo de querer sempre ir mais longe.</span></p><div><br /></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-4477727321777369252021-01-29T16:48:00.008-08:002021-02-01T19:01:06.787-08:00Reflexões sobre o conceito de imaginação musical: me tornando guitarrista <p style="text-align: justify;"> <span> <span style="font-family: arial;"> </span></span><span style="font-family: arial; font-size: large;">Ser um guitarrista é um processo (ele ainda está acontecendo) que começou pelo sonho de ser um guitarrista. Desse sonho fazia parte o desejo de me tornar algo próximo daquelas poucas imagens disponíveis dos guitarristas que eu assistia em vídeos e, principalmente, ser capaz de me expressar da forma como aquelas minhas primeiras referências na guitarra se expressavam. Ou, melhor dizendo, eu via no modo de tocar dos meus guitarristas preferidos, algo que me mostrava um caminho pelo qual eu poderia ser capaz de encontrar minha própria forma de expressão.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Durante um ou dois anos, eu toquei apenas no violão, mas nunca com uma técnica violonística. Desde o início eu tocava com palheta, fazia bend, fazia Power chord. Ao pegar num violão, minha imaginação queria se expressar por ele, mas o que havia nela era o rock e a abordagem da guitarra. Consequentemente, meu desejo esbarrava em uma série de frustrações. Outros obstáculos eram as insuficiências de conhecimento de técnica, de teoria e percepção musical. Esses obstáculos merecem reflexões mais detalhadas. Por enquanto, digo apenas que hoje sei que esses são impasses permanentes na vida de alguém que aspira tornar-se músico.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Entre limitações e possibilidades iniciais no contato com o instrumento, a imaginação musical, mais do que se expressar, vai se construindo, ou reconstruindo, na verdade. Isso porque, por mais que após alguma exposição a um ambiente musical, já existam na mente e no corpo alguns padrões melódicos e rítmicos, acredito que a imaginação musical não fica lá dentro parada, ou crescendo, existindo como música pura, até que seja posta para fora com o auxílio de um instrumento musical tocado adequadamente. Parece bastante plausível que seja ao lidar com a materialidade do instrumento, com a especificidade de sua afinação, do seu timbre, com o modo pelo qual se pode tocar escalas e acordes, somente ao produzir som é que a imaginação musical volta a existir e sugerir possibilidades de criação. Digo que volta a existir, porque antes de entrar em contato com um instrumento musical ela já havia existido, naquela criança que cantava o que ouvia, da forma particular e espontânea como ouvia. Nessa expressão ela produzia sons, lidava com a diferença entre o som real e o imaginado na mente; percebia as possibilidades de sua afinação, de seu ritmo, de seu timbre, etc. Na adolescência é bastante comum que essa expressão seja bloqueada por uma série de inibições que na maioria das vezes duram para o resto da vida. Com sorte, uma pessoa reencontra seu caminho musical. O que eu queria, portanto, era acessar possibilidades que me permitissem produzir sons que soassem como as musicas do rock dos anos 60 e 70. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;">Foi aí que descobri a escala pentatônica. Talvez essa tenha sido a primeira ferramenta graças à qual eu pude começar a movimentar minha imaginação musical na direção que eu desejava. Primeiro, é preciso dizer que eu não entendia, durante muito tempo, o que era a escala pentatônica. Eu sequer aplicava, de forma espontânea, o famigerado shape:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiezlHFqU8XsWaBqyPufd4KG1VgH2xtFuVVXLNbsUD-S1AoT20967UwOvfwF3yp5u-fqnKZGcE6d-DJI5xwCV7p6RM1Qb4ymvUlOeLGgHh1unOF-MsZG0Q7wxngBL-w9tT6hF9OdC_pJuo/s273/penta1.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="192" data-original-width="273" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiezlHFqU8XsWaBqyPufd4KG1VgH2xtFuVVXLNbsUD-S1AoT20967UwOvfwF3yp5u-fqnKZGcE6d-DJI5xwCV7p6RM1Qb4ymvUlOeLGgHh1unOF-MsZG0Q7wxngBL-w9tT6hF9OdC_pJuo/s0/penta1.jpg" /></a></span></div><span style="font-family: arial; font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>O modo como essa forma soava me parecia sem graça e além do mais, de digitação difícil, por causa das aberturas de um tom e meio na mesma corda, que nos primeiro anos eram bastante frustrantes para mim, mesmo minha mão não sendo pequena. Aprendi essa forma com um amigo, que aliás também não a executava com uma fluidez que motivasse a imaginação a incorporar essa ferramenta, como possibilidade interessante. Mesmo assim, criei um apego ao nome “escala pentatônica” (que não sei se eu entendia que era uma referência às suas cinco notas - provavelmente eu achava que ela tinha doze...), e de vez em quando, no meio de um improviso eu pensava “agora vou usar a pentatônica”. O que eu não sabia, antes de querer “usar a pentatônica”, é que o que eu, de forma espontânea, já estava fazendo antes, era a escala pentatônica. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Intuitivamente, eu cheguei a esse shape:</span><span style="font-family: arial; font-size: x-large;"> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixdM355W9960s21mmU9GodvQzxmv-nDtREHXtT3s2PXClh8rt-Q4Z46bgfS-P7mK9WId1WeP85-BYZIh1CmVj9clh3Yz3CWqqjL65UqAdmfj0TcGV2PdSUxBAcJpg3g8UU0k2LUeDwtQw/s447/penta2.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="119" data-original-width="447" height="117" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEixdM355W9960s21mmU9GodvQzxmv-nDtREHXtT3s2PXClh8rt-Q4Z46bgfS-P7mK9WId1WeP85-BYZIh1CmVj9clh3Yz3CWqqjL65UqAdmfj0TcGV2PdSUxBAcJpg3g8UU0k2LUeDwtQw/w440-h117/penta2.jpg" width="440" /></a></span></div><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Novamente, eu não tinha ideia sobre o que é que eu estava fazendo, mas sabia pelo som, que sempre dava certo no rock e mesmo em rodas de coisas diferentes que eu me atrevia a tocar, e algumas vezes conseguia até enganar um pouco. Atualmente (e pessoalmente) eu diria que aquele shape anterior só funciona musicalmente se estiver relacionado aos outro quatro shapes baseados no sistema CAGED, o que demanda tempo de estudo e treinamento para a visualização das formas. Durante muito tempo eu não tive, por diversos motivos, nenhuma dessas duas condições.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Esse shape ao qual cheguei intuitivamente tinha algumas vantagens e algumas limitações. Vou expor sobre as vantagens. Esse shape, permite percorrer diagonalmente o braço, o que possibilita estar mais livre para criar ou reproduzir melodias da vida real. Ele funciona de uma forma que é muito simples fixar: são três notas numa corda, duas na corda seguinte e assim vai alternando. Não existe o problema do intervalo de um tom e meio na mesma corda. Quanto às três notas na mesma corda, jamais digitei usando três dedos. Sempre foi muito possível usar os dedos um e dois nas duas primeiras e fazer slide para a terceira. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Os caminhos da escala pentatônica, percorrido a partir dessa digitação foram permitindo, conforme eu testava as possibilidades, rapidamente descobrir do que eram feitos muitos riffs de bandas como Deep Purple, Led Zeppelin e Black Sabbath. A escala pentatônica, mesmo que tocada mecanicamente, gradualmente trazia para as mãos as melodias que entravam pelos ouvidos. Nessa etapa, a imaginação musical ia se construindo a partir da conexão entre o que eu era capaz de ouvir e o que eu era capaz de tocar. Colocando de outra maneira, do ponto de vista da criação, era por essa lenta relação entre elementos tão distintos, ouvir e tocar, que evoluía aquilo que eu era capaz de imaginar, como base para a composição e para o improviso.</span></p><div style="text-align: justify;"><br /></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-48380013181364589222021-01-23T06:12:00.003-08:002021-01-29T16:54:42.621-08:00Reflexões autobiográficas sobre o conceito de imaginação musical<blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px; text-align: left;"><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"> <span style="font-family: arial; font-size: large;">Ultimamente venho pensando em abordar um tema que tem surgido na mente: a imaginação musical. Decidi, então, começar a procurar algum contorno para o assunto, começando por uma reflexão sobre minha experiência musical pessoal, com todos os limites que inicialmente isso possa apresentar.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Imaginação musical, como eu a concebo, seria aquilo que movimenta e, possivelmente, faz com que surjam ideias musicais a partir de dentro do repertório de músicas com que tive contato ao longo da vida.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>A partir dessa definição, penso em dois aspectos fundamentais que devem ser ressaltados. O primeiro é o afeto. Ou seja, é preciso estar consciente de que com cada música que me chegou aos ouvido, eu estabeleci um tipo diferente de relação. De algumas eu gostei, de outras eu não gostei; algumas eu deixei de ouvir depois de algum tempo, outras eu demorei muito para começar a gostar. Houve músicas que nem sequer me tocaram de nenhuma forma, que talvez tenham sido totalmente irrelevantes. Por outro lado, houve aquelas que se tornaram elementos centrais na formação da minha identidade pessoal em diversos períodos da minha vida. </span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;">Parece que conexões estéticas foram se estabelecendo com algumas músicas, a partir das quais eu ia dizendo a mim mesmo, de uma certa forma, conforme ia ficando mais velho, quem eu era. No mesmo sentido, quanto às músicas que odiei, na mesma medida me construíram, constituindo de forma tão semi-consciente quanto no caso anterior, aquilo que eu não era, aquilo que eu não queria, e do que eu queria me diferenciar, não só musicalmente, mas enquanto um ser existente no mundo. Isso pode significar que aconteceu para mim uma conexão entre estética musical e ética pessoal.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>O primeiro aspecto da imaginação musical, portanto, eu gostaria de afirmar que é o afeto. O segundo é a própria atividade de fazer música. Ou seja, é muito comum observar que desde muito cedo as crianças cantam. Claro que isso acontece na medida em que elas imitam algo daquilo que surge no ambiente musical que as rodeia (e na medida em que estabelecem conexões afetivas com as músicas). A primeira criação, me parece, surge da imperfeição da memória infantil, que muitas vezes irá decorar uma melodia só até certo ponto, para depois improvisar os trechos que não puderam ser lembrados. Em seguida parece que o que pode acontecer é que a criança descobre que ela pode cantar qualquer melodia que lhe venha à mente, e ficar horas improvisando livremente. Claro, o que ela não sabe é que essa liberdade ocorre tendo como base os referenciais do ambiente musical que lhe chega ao ouvido. Nesse processo as crianças muito cedo incorporam um determinado repertório de melodias e padrões rítmicos próprios ao seu contexto cultural. É aí que se incorpora também, no mundo ocidental moderno, implicitamente, os parâmetros do sistema tonal.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Bem, esse último argumento eu escrevi de forma objetiva, como se estivesse baseado em alguma pesquisa com crianças em geral, mas na verdade ele é a generalização de algumas lembranças de como eu tomei contato com a música e de observações feitas sem método. Vários aspectos são contraditórios e dariam boas discussões sobre condicionamento cultural. Nesse momento vou dar atenção ao que me levou à guitarra e como vai sendo produzida minha imaginação musical, na medida em que avança meu estudo desse instrumento.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>É claro que como uma criança de classe média-média, eu estava exposto aos produtos mais evidentes produzidos e veiculados em massa pela indústria cultural. No meio da década de noventa esses meios de difusão musical eram as rádios, a televisão de rede aberta e as lojas de CD, apenas começando a existir. Isso significa que o acesso era bastante restrito comparativamente à diversidade disponível atualmente. Como se sabe, as rádios tocavam as músicas de artistas bancados por grandes gravadoras, dispostas a pagar o preço. Quanto às TVs abertas, acontecia o mesmo. Além disso, a qualidade do sinal e as caixas de som dos equipamentos disponíveis, nem sempre tinham uma qualidade razoável, o que sem dúvida prejudicava a apreciação. </span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Foi decisivo, portanto, que em casa houvesse uma quantidade razoável de discos de vinil de rock, que eram do meu pai. As capas daqueles discos sempre me impressionaram. Traziam imagens fantásticas que instigavam a curiosidade para saber que música havia neles. Foi aí que eu comecei a ouvir rock dos anos 1960-1970. Esse tipo de música gerou uma adesão mais profunda e construção de identidade, enquanto que a recepção das músicas da moda eram superficiais e descartáveis, como aliás é provável que fosse o objetivo de seus próprios produtores.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>Essas foram, portanto, as condições mais gerais para a criação do meu ambiente musical e, consequentemente, da minha imaginação musical. Quando comecei, aos 14 anos, no meio dos anos 1990 a tocar violão, o universo sonoro que eu tinha em mente era dominado pelo rock inglês e americano das décadas de 1960 e 1970. A princípio, eu queria tocar as músicas que eu gostava de ouvir e, desde muito cedo, compor músicas que se enquadrariam, necessariamente, dentro daquele conjunto de referências que eu acreditava ser a única forma possível de música boa. Essa “música de qualidade” pela qual eu me autodefinia como um adolescente capaz de estar além “daquilo que todo mundo ouve” - na época, pagode, axé e sertanejo - consistia em alguns poucos discos de vinil e fitas cassete de bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Yes, Genesis, ELP, The Who. Algum tempo depois eu e meu irmão já conseguíamos comprar alguns CDs, e acessamos Beatles, Black Sabbath, Deep Purple, Rush. Muitos anos se passaram até que houvesse abertura para alguma banda mais atual: Nirvana, Dream Theater, Metallica. Nesse período já era possível baixar músicas, mas muitas vezes com o objetivo de conhecer, para depois comprar o CD. Em pouco tempo essa prática perdeu completamente o sentido.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><span style="white-space: pre;"> </span>O fato, portanto, é que meu quadro de referências era absolutamente limitado ao que tínhamos em casa, ao que podíamos comprar e, inclusive ao que havia disponível nas lojas: com o início da internet, era possível ter informação sobre alguns discos cujo acesso parecia completamente impossível, por serem importados. Mas não se trata apenas desse limite de acesso. Assim que começamos (eu e meu irmão) a baixar músicas, muitos desses limites de acesso caíram. Entretanto, o limite daquilo que considerávamos música boa e música ruim era bastante rígido. </span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;">Nesse sentido, a internet permitiu pesquisar sobre a existência de bandas dos anos 1970, que não constavam na coleção de discos do meu pai, e ao que me parece, talvez fossem ainda menos acessíveis à maior parte dos roqueiros brasileiros das décadas de 1970 e 1980. Bandas como King Crimson, Gentle Giant, Greatfull Dead, Frank Zappa. Algum tempo depois meu irmão começou a ouvir principalmente metal. Eu não acompanhei. Meu gosto foi cada vez mais em direção ao aparentemente interminável, e pretensiosamente imbatível universo do rock progressivo e experimental dos anos 1970. Nesse momento eu meu irmão estávamos nos distanciando não apenas em termo de rock, mas é bastante claro o como nossos respectivos gostos musicais são indicativos de que tomávamos direções muito diferentes na construção de nossas identidades.</span></p><p style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><span style="font-family: arial; font-size: large;">Percebe-se, portanto, que no estágio em que se encontrava meu gosto musical e minha identidade, aí já na primeira década dos anos 2000, mesmo o desejo de descobrir coisas novas permanecia restrito ao rock e aos anos 1970. A música brasileira e o jazz, estavam fora que questão. Não faziam parte da minha imaginação musical.</span></p><div style="text-align: justify; text-indent: 47.2px;"><br /></div></blockquote>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-51449930138354424642017-01-07T12:19:00.001-08:002019-05-07T11:28:30.511-07:00Notas sincerasAcordei sem banho, isso vem primeiro. Minha noite foi bem dormida. Assim que fechei a porta do quarto ele se tornou meu mundo, o único existente. Respirei fundo e quebrei na mente o impulso diabólico de, por todo o tempo, colocar coisas na cabeça, retirar coisa da cabeça. Por alguns minutos me concentrei nas partículas invisíveis das quais são feitas as coisas e os pensamentos. Depois agradeci aos tijolos e às portas de madeira, ao asfalto lá em baixo na rua, e finalmente, bem fraquinho ao solo e à água que passam debaixo dele. Todas essas coisas sou eu mesmo, no fim.
Ninguém me deve nada. Nem respeito, nem consideração, nem gratidão, nem fidelidade, nem reciprocidade de nenhuma forma. Ninguém me deve nada. Quando eu me esqueço disso não corro nenhum risco de ser livre. Me amarro pelo ressentimento, pelo despeito e pela expectativa a tudo aquilo que independe de mim mais ainda que minhas próprias ações, elas mesmas imponderáveis, determinadas, do começo ao fim, pelo meu nascimento.<br />
Acordei acariciado por incômodos antigos e com vontade de consertar o mundo com conhecimento. O conhecimento estava em mim e de mim ele transbordava afogando toda a humanidade em pacífica beatitude e fraternidade. Depois eu pensei "bobagem!" e tomei meu café acompanhado de pão com manteiga. Até quando eu terei café e pão com manteiga? Não importa. Quando não tiver eu lidarei com o fato de não ter e disso algo de bom surgirá, sem dúvida. Enquanto tem, tem. Ótimo.<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-77101336641657953302016-11-21T03:37:00.000-08:002016-12-24T05:43:32.148-08:00As folhas verdes no chão, o álcool e os campos de concentraçãoÉ como se fosse uma rampa de vidro pela qual vou tentando subir rastejando. Não tem onde pegar, desliza. De vez em quando jogam lá de cima um pouco de óleo, e daí que não dá mesmo pra subir. Subir pra que? Subir pra onde? Bem no meio dela tem um eixo, como os que tem nas gangorras de parques para crianças. Então quando a subida passa pela suposta metade a coisa vira e de repente percebo com espanto que estou descendo. Descendo, subindo, que diferença faz? Que mal tem?<br />
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Isso nunca existiu na vida real. O que existiu, que tinha isso por dentro, como se fosse o esqueleto de um grande animal, foi uma situação cotidiana e ela, por sua vez, era o próprio animal. O animal era o seguinte: entrei no ônibus, novamente - num certo nível, infinitamente - e vi que por todo o chão havia pipocas espalhadas e pisadas. Imaginei que alguém abriu o pacote com muita força, rasgou ele inteiro. Na curva, o ônibus colaborou pra que caísse tudo no chão. Algumas pessoas devem ter sorrido, algumas devem ter rido por dentro, outras fingiram que não viram pra não se comprometer, outras fingiram que não viram pra não constranger aquela pessoa incapaz de abrir um saco de pipocas dentro do ônibus. Eu desconfio até, que ainda algumas pessoas olharam com ódio por terem de lidar com um acontecimento inesperado desses, inconveniente. As pessoas iam entrando no ônibus e pisando nas pipocas, naturalmente. </div>
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Eu ia olhando as árvores que gritavam contra o azul do céu, novamente.</div>
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Desci do ônibus e vi dois meninos jogando bola. O pai era o gandula. "Uma vez fui eu que joguei bola assim e o tempo já estava passando sem que eu notasse", eu pensei.</div>
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De todo modo, era segunda-feira: é proibido viver, todo mundo sabe disso. "Melhor esperar mais dois ou três dias", mas quando chegar, finalmente, eu não vou querer mais, é claro. Será sempre o <i>Mesmo</i>, ou será sempre o mesmo <i>Acontecer-Desgovernado</i> tendendo ao <i>Mesmo-Mesmo</i>. O <i>Tudo</i> coincidindo com o <i>Nada</i>, a <i>Qualquer-Coisa</i> coincidindo com a <i>Coisa-Obviamente-Provável</i>.</div>
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Bom, por onde que a gente começa de novo, então? Pode ser escrevendo, nesse caso. "Pra que?" eu poderia pensar. Qualquer coisa que eu escreva só vai reforçar a ideia de que eu sou uma coisa que precisa tornar-se outra. Claro, isso acontece, a princípio, porque vi muito filme americano. O fato, no entanto, é que todo mundo viu muito filme americano, a ponto de que, num certo nível, o que parece é, inclusive um pouco até quase o fundo. Quase...</div>
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Às sete da manhã eu acordei antes do despertador. Acordei pacificamente até que, alguns segundos depois me lembrei dos pesadelos. Eram pesadelos cheios de sangue e coisas mal encaixadas. Fazer o que... É preciso sair da cama. "Que eu vou fazer hoje?" "Saber, enfim, que eu sou o que eu sou, de todo modo, é libertador", pensei, em seguida "não vou ser outra coisa. Não é possível e não resolveria nada mesmo. Tudo está bem." Isso, é claro, num certo nível. Tem momentos da vida que eu acredito que se eu entendo o que é <i>O</i> <i>Certo</i>, esse certo se faz por consequência e, além do mais, na totalidade. Criancice. Isso quer dizer, então, que em outro lugar, no estômago, eu acho, eu continuava acreditando na necessidade de reformar uma coisa aqui, outra ali, fazer isso e aquilo de um jeito mais bem feito, e aí sim! Aí sim tudo ficaria sob controle. Essas convicções saem do estômago e se irradiam pelo corpo como uma agressão misteriosa. Elas existem, sim, é preciso reconhecer, embora elas, atualmente, batam no <i>Eu</i> profundo e retornem, momentaneamente, ao ponto de onde vieram. Ficam lá, pacificas, enquanto o <i>Eu</i> profundo se expande. Depois acabo me distraindo porque eram sete da manhã, céu azul. Os carros passavam com muita velocidade, os ônibus cheios de gentes. Um motorista teve um segundo de vacilo e não viu o sinal esverdear-se. O motorista de trás esmurrou a buzina como se estivesse se vingando dos próprios pais que o puseram, sem seu consentimento, nesse mundo e, consequentemente, no meio do trânsito que leva <i>Para-lugar-nenhum</i>.</div>
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Que eu faço agora? "Eu fiz meu melhor e ele não foi o bastante". Será sempre isso? Sem dúvida, enquanto o parâmetro de avaliação do <i>Melhor</i> e do <i>Bastante </i>forem... [será que eu devia ter inventado alguma coisa pra completar esse argumento de forma coerente?]. Ainda tem o <i>Fazer</i>... "eu fiz"...<br />
A não ser que se queira dar uma de bonitinho, é preciso entender - e aceitar - que sempre acaba no meio. Aliás, sempre começa no meio.</div>
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Desci do ônibus e voltei pra casa.</div>
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-50742373141197310992016-11-02T09:45:00.000-07:002016-11-02T09:55:51.103-07:00O atravessamentoEla ia de um lado para outro, ajeitava uma coisa aqui, outra ali. Passava na frente da televisão, ria de qualquer bobagem, permanecia impassível diante de qualquer tragédia. Depois sentia vazio, sentia que sua vida não tinha sentido e não sabia porque chorava e sofria de dor de cabeça, e então "preciso me acalmar", dizia. Esforço inútil: novamente estava na frente da televisão vendo algum imbecil fazer gracinhas porque "não dá pra levar a vida tão a sério", e depois, inexplicavelmente vinha o desespero. Pegava um pano, limpava coisas que já estavam limpas. Impossível: o tempo é muito grande para que se tente matá-lo assim tão futilmente. Que perturbação ver uma pessoa bater-se de forma tão estúpida... O próprio Buda acabaria rangendo os dentes e desfazendo seu lótus para rolar no colchão até o amanhecer.<br />
Foi então que percebi, finalmente: ela não existe. Não existe, é o mesmo que nada. E a velhinha que passa os dias sentada na cadeira em frente à casa no fim da rua? Acena para os passantes, informa-lhes gratuitamente que faz frio ou calor... Ela não existe, sem dúvida. Eu existo? Nada existe. Quanta paz nessa nova descoberta!<br />
Logo em seguida, um bebê começou a chorar. Ele não parava. "Ele não vai parar", disse a mãe que o segurava nos braços. O pai ouvia com expressão de quem teve o cérebro comido por aquele choro insistente. O choro continuou, enchendo de existência aquele nada tão desejado. O choro do bebê, um cachorro latindo longe na madrugada, a gastrite: o nada foi apenas um sonho breve, afinal.<br />
Mas tudo bem.<br />
Eu já estava cansado depois de andar tanto tempo debaixo de sol sem que nada acontecesse. Resolvi parar em uma praça, que estava quase vazia e tinha bastante árvores fazendo sombra. Me sentei em um dos bancos e logo meu olhar se fixou em uma das pedras da calçada. Aos poucos o silêncio começou a preencher minha mente e os contornos da pedra começaram a se dissolver, ao mesmo tempo que o aspecto visível de sua textura se tornou mais nítido.<br />
Em seguida, uma voz surgiu e minha percepção do som das palavras, da intensidade com que elas eram ditas e depois iam sumindo, fez parecer que essas palavras ditas eram análogas às pedras. Ou seja, elas eram como bolhas que iam se enchendo sozinha no ar, cresciam e estouravam. "As letras são um delírio completo", pensei. As palavras continuavam, seus limites primeiro eram claros, depois se desfaziam. Era uma mulher brincando com uma menina no balanço da praça. Ela dizia para a menina frases alegres repetidas, que eram como pedras de calçada.<br />
Claro, isso acontece porque os limites das coisas, sua extensão, sua textura, só são óbvios quando eu olho distraidamente para as coisas. Olho distraidamente, enquanto penso em outras coisas. Superficialmente, tenho certeza de que tudo é o que é, como sempre foi. Depois, no entanto, de respirar fundo, encontrar os silêncios da mente, alinhar minha coluna perpendicularmente entre o chão e o céu, essas coisas, as pedras e as palavras, passaram a se apresentar com seus limites dissolvidos. Uma pedra e outra pedra, o mato que crescia entre suas frestas, as palavras da moça, a própria moça, o ar... havia uma continuidade entre essas coisas todas. Onde acabava uma e começava outra, existia apenas um contorno esfumado, poroso.<br />
"Isso resolve o que?", pensei. Nada. Então tudo novamente ficou certo. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-8072935280723999262016-10-14T08:52:00.001-07:002016-10-14T08:52:17.920-07:00Anotações antigas de leituras esquecidasOutro dia eu encontrei, no meio das minhas coisas, anotações feitas há exatamente um ano atrás. Como não poderia deixar de ser, algumas convicções que naquele momento pareciam definitivas se desfizeram. Algumas previsões, por outro lado, acabaram se tornando, espantosamente, a realidade.<br />
<br />
"Enquanto o mundo segue consumindo-se a si mesmo levado por uma espécie notadamente perversa de loucura, eu me permito, mais uma vez, sentar à sombra, em meditação. Daqui a não muito tempo haverá, sem dúvida, quem diga que eu estou me perdendo.<br />
Abri o livro e li algumas páginas.<br />
Que surpresa eu tive quando notei que minha leitura das angústias daquele Mathieu complexo e prisioneiro de si mesmo, saído da cabeça de Jean-Paul Sartre, dessa vez não chegou a me afetar. Interrompi a leitura e fiquei olhando o mar enquanto tentava entender qual a razão para que agora, sentado na areia, debaixo de um coqueiro isolado, a beleza trágica daquela literatura perigosa não se convertesse na dor física de estar diante de um beco sem saída. Sem saída apesar de se saber muito bem do que ele é feito. Fechava o livro e seguia andando mais um pouco. A cada parada retomava a leitura e cada vez mais compreendia que, enfim, eu deixara de ser Mathieu, e <i>A</i> <i>idade da razão </i>deixara de ser uma narrativa sobre meu próprio destino.<br />
Minha satisfação aumentou ainda mais quando, algumas páginas depois, chegou a vez do próprio Mathieu superar o emaranhado de forças obscuras que o condenavam à sua situação aparentemente inevitável. Esse acontecimento se deu num cabaret em que estavam o personagem e seus amigos. Entre eles, pontuando a amizade, existiam ódios velados, constrangimentos, ressentimentos, que constituíam minúsculas mas intransponíveis distâncias.<br />
Quando Mathieu e Ivitch finalmente ficaram a sós na mesa, iniciou-se uma daquelas conversas complexas em que nenhuma das partes é capaz de ir direto ao assunto. Ivitch, já bêbada, começou a demonstrar implicâncias com a mulher sentada à mesa vizinha e, para provocá-la, pegou um canivete com o qual fez um corte profundo na palma da própria mão.<br />
Ela deixou que o sangue escorresse e aproveitou também para ridicularizar Mathieu, ao ver seu desespero diante da atitude sem explicação. Impelido pela situação de absurdo generalizado, Mathieu então tomou de Ivitch o canivete para cravá-lo, dessa vez, em sua própria mão. Nesse ponto Sartre acrescenta que, nesse momento ocorreu no bar uma grande agitação decorrente do escândalo causado na "opinião pública" devido às atitudes encenadas por seus personagens. "Está vendo! Não há nada de especial, qualquer um pode fazê-lo!", gritou Mathieu mostrando a mão quase atravessada pela lamina. Agora quem estava em choque era Ivitch, "por que você fez isso?!" dizia, enquanto o ajudava a retirar o canivete. O sangue se misturava e, por fim, os dois riam. Em meio àquela atitude extrema e irrefletida, todas as complexidades e rancores se desfizeram. Ao se verem, por um instante, liberados, pela exposição ao absurdo, dos constrangimentos - que na verdade são os elementos definidores das personalidades individuais no estado de normalidade - fez-se, espontaneamente o riso como expressão da descoberta de algo profundo e comum.<br />
Eu ainda não sei o que virá depois disso, mas se existe equivalente dessa construção literária na vida real, eu diria que, o Mundo tende a pressionar o novo estado de espírito de volta aos limites anteriores à epifania, neutralizando as potência transformadoras por ela desencadeadas. Com isso, aquele que se acreditava finalmente livre se verá mais uma vez frustrado, - ao ver retornarem os ódios e ressentimentos necessários à manutenção das posições que foi levado a ocupar em sua existência social - até que seja capaz de ir realmente mais longe."Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-12662146093292854302016-09-16T15:48:00.000-07:002016-09-16T16:00:17.482-07:00Restos de dias passados .3Abri os olhos. Alguns segundos se passaram, ouvi os carros passando lá fora. No meio deles, nada além de alguns pássaros. Entendi que estava acordado. O sonho não estava bom, nem ruim, mas o quarto desfocado que eu via antes de colocar os óculos, eu achava que estava pior. Assim que eu saísse da cama, minha realidade consistiria em não mais que algumas poucas atividades sem muita conexão entre si. Aos poucos elas foram surgindo na mente como projeto de dia. "Vou comprar pão, fazer café. Depois preciso ver meus e-mail. Posso ler um pouco, se tiver paciência."<br />
Todos os dias são assim. Outro dia uma moça me disse, "você tem que trabalhar oito horas, que nem todo mundo!" Eu ri, ela riu.<br />
E se eu fosse cego? e se eu tivesse uma perna, um braço a menos? alguma doença bem filha da puta dessas que as pessoas acabam tendo apesar de tudo. Eu não tenho nada disso, eu devia estar grato. Mas grato a quem? Se eu tivesse alguém a quem agradecer, ou alguém a quem reclamar... é para isso que existe a literatura, para suprir a falta de ter com quem reclamar. Os serviços de atendimento ao consumidor criados pela sociedade estão, é claro, em total descompasso com a vida. Na vida eu não posso devolver nada, trocar uma coisa por outra... O que veio pra mim veio pra mim e acabou, parece.<br />
Mais tarde, o almoço. O de sempre. Por mais que mude a carne, o acompanhamento, o tempero, tudo, no fim, é o de sempre. Sem gosto, pra nada, qualquer coisa por puro impulso, um hábito, no mesmo horário, na mesma mesa. E se eu fosso uma dessas pessoas que não tem o que comer? Eu devia estar grato.<br />
Durante esse almoço eu fui pensando que a palavra futilidade irá cair em desuso. Em breve não haverá mais nada que ela possa nomear que seja possível distinguir do todo da realidade. Por que as pessoas falam as coisas que falam? Por mais que mudem os temas, por mais que mudem as palavras. Comentários sem propósito, falatório inútil. Sempre. Preenchem o espaço a troco de nada.<br />
Quando acabou o almoço eu percebi que as pessoas se dividem em dois grupos: um é o dos coadjuvantes, o outro é o dos figurantes. <br />
Acordei novamente e dessa vez fui pra rua, esperando que o movimento frenético das coisas na direção do nada pudesse me distrair. Não funcionou.<br />
Um ônibus ia se aproximando cheio de violência. Dentro dele os velhos e as crianças estavam sendo jogados de um lado para o outro, rolavam pelo chão, metiam suas caras nas janelas. As pessoas sentadas não davam lugar a estes pobres fracos. O motorista ia afundando o pé no acelerador, e inconscientemente tentava capotar o ônibus ao fazer as curvas. Sua expressão de apatia estava vagamente voltada para frente para que pudesse dar atenção aos semáforos, aos pontos de parada, aos sinais dados pelas pessoas de dentro e de fora, etc. Ele seguia com expressão de apatia e descaso pela vida dos outros. Mas também, coitado, ele ganha uma miséria pra fazer um serviço tão desgraçado. Deviam dar a ele 1 milhão por mês, que nem dão pro Neymar jogar bola. Daí ele ia poder comprar uma cobertura em Copacabana, uma mansão sei lá onde, cocaína de qualidade, prostitutas caras, carros caros. Não ia mais dirigir ônibus, nem subir em ônibus. Ia abrir uma empresa, contratar pobres coitados pra chamar de vagabundos, pagar miséria, arrancar o couro. Fazer um moicano, pintar de loiro. Ia acabar se suicidando com uma arma cara, cheio de vazio.<br />
Um passo em falso e eu entrei bem na frente desse ônibus. A batida foi tão forte que minha cabeça foi partida ao meio, deixando escapar sobre o asfalto um monte de coisas. O ônibus seguiu seu caminho. Os pedestres olhavam incomodados com aquele evento imprevisível bem ali no meio da rua, depois continuavam indo para onde eram levados a ir. Me levantei e percebi que conseguia respirar melhor agora. "Você ta querendo chamar a atenção, né?!" gritou uma velhinha com cara de quem não aguenta mais.<br />
Encontrei uma boa sombra de árvore e me sentei debaixo dela. O tempo passou.<br />
O sol já estava quase nascendo, e eu resolvi esperar para ver como seria. Tranquilamente nasceu amarelecendo no céu. As poças d'água secaram, os pássaros cantaram no meio dos carros. Muito estranho, eu já não me lembrava do que tinha me levado até ali. "Devo concluir que amanhã sempre será outro dia?"<br />
Levantei e voltei para casa. No caminho comprei um sorvete, um café, um pastel, uma coxinha, uma paçoquinha e uma cerveja.Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-36076416949792889442016-08-21T16:51:00.000-07:002016-09-04T15:45:13.616-07:00Restos de dias passados 2O rapaz da mesa ao lado estava escrevendo em seu caderno. Do lugar onde eu estava eu espiava uma das páginas escritas e nela estava o seguinte:<br />
<br />
"Assim que a chuva deu uma primeira trégua eu corri para a rua. Consegui andar algumas quadras, estava frio, voltou a chover. Me refugiei durante algum tempo, depois finalmente peguei o ônibus. Chegando ao ponto foi só descer e correr, procurar de novo alguma proteção contra a água que cai do céu pra fazer brotar da terra um pouco mais dessa vida.<br />
Tudo estava molhado, não tinha lugar onde sentar. Mesmo assim dormi e sonhei que estava entrando no consultório onde recebem as pessoas que pretendem se curar de suas loucuras. Uma mulher que se julgava inteiramente normal, estava contando para a recepcionista e para quem mais quisesse ouvir, coisas de sua vida e essas coisas não tinham nenhum interesse, não era possível. A recepcionista que a ouvia tinha o olhar de quem se encontra à beira de um colapso nervoso.<br />
Saí e tive que enfrentar mais chuva.<br />
Já era hora de almoçar e para comer tinha salsicha acebolada com purê. Impossível não lembrar que salsichas são feitas de frangos defeituosos que eles colocam inteiros dentro de trituradores. Para dar liga na massa usam papelão de caixas que encontram largadas na rua, no lixo, e pra deixar gostoso finalizam acrescentando corante e sal. Uma coisa dessas só poderia ser comida por pessoas ignorantes, negligentes, cínicas, pobres, autodestrutivas e apressadas. Bem, é justamente o que somos. Tive a ideia de comer também a salada para compensar. O sabor era indiferente.<br />
Acordei a tempo de pegar o ônibus de volta para casa. De novo lotado. O caminho todo em pé carregando bagagens cheias de coisas inúteis e indispensáveis. O trânsito estava todo emperrado. "Vai demorar", pensei.<br />
Chegar em casa foi um enorme alívio. A sensação de fechar a porta e deixar o mundo do lado fora. No aconchego do quarto a chuva que continuava caindo enorme na rua agora me ajudava a dormir.<br />
Quando amanheceu, o dia já chegou desabando bem por cima do meu corpo inerte, que insistia em permanecer de baixo das cobertas. Só que estava calor."<br />
<br />
O rapaz deixou a escrita por alguns instantes. Olhava fixo para um ponto qualquer na parede. Ele estava com cara de quem não sabe o que fazer no mundo. Em segredo, reprovei essa atitude e percebi que ele estava pensando o seguinte:<br />
<br />
"Por que eu escrevo essas coisas tão horríveis? Eu olho pro papel e fico pensando que eu queria inventar ideias bonitas para redimir a humanidade. É uma ideia antiga, com certeza, pretensão de milhões de desavisados que viveram e morreram ao longo da história toda, muitos sem reconhecimento nenhum.<br />
O carro na frente dos bois, o passo maior que a perna. Essas imagens me invadem. Uma torre construída sem alicerce, às pressas; a base mais estreita que os pavimentos mais altos. Ela vai desabando por dentro. É feita de material poroso revestido com coisas colocadas do lado de fora para mostrar que dessa vez ficou bonito, dessa vez está feito bem feito. Uma grande obra, inigualável.<br />
E então me arrependo do pensamento doloroso que novamente surgiu não sei de onde.<br />
Eu queria ter escrito algo que mostrasse a compreensão admirável de que o mal não existe, de que a vida é um grande fluxo de acontecer e que é preciso simplesmente desapegar desse mal hábito do pesadume. Mas isso tem que ser logo, tem que ser hoje, tem que ser claro e transparente. Um monumento à superação da fraqueza... Mais uma vez me apresso e acredito estar na posição de um santo que olha com compaixão e bondade para os tropeços cegos dos outros! Dos outros, os meus se acabaram, definitivamente!<br />
Descubro então minha própria espera pela compaixão. Sede de sofrer mais, sofrer até que me estendam a mão, até que não possam evitar o sentimento da obrigação de acolher o pobre coitado. Alguém vai rir - eu já sei - é inevitável, "coitadinho do coitado", e eu vou rir também e dizer que estava só brincando e que na verdade isso tudo é bobagem.<br />
Não foi à toa que a mente humana criou a imagem do diabo. Às vezes eu vejo na rua o escárnio esculpido em alguma cara miserável, vermelha de álcool, babando impropérios inaudíveis aos carros que passam de olhos fechados.<br />
O vazio continua no mesmo lugar, intocado. Ele aumenta, na verdade, é claro. Sem nenhuma razão controlável, tudo vai se desfazendo, o que parecia estar bem feito se dispersa, liberando novos espaços para o nada. "<br />
<br />
Achei todas essas conclusões uma vergonha. Me levantei e paguei a conta, o rapaz continuou lá, com a mesma cara de cachorro abandonado.<br />
O tempo passou e ele continuou na mesma mesa, diante de seu caderno de anotações. Eu já estava muito longe dali, tinha até chegado em casa.<br />
Quando finalmente ele se levantou para ir embora, todos até os funcionários tinham também deixado o bar e apagado as luzes. Ao tentar sair o rapaz deu com a cara bem na porta fechada, que era transparente, de vidro. Como ele podia ver o lado de fora, não pode entender imediatamente o que impedia sua saída e tentou novamente. Seus dentes sangraram e mancharam o vidro, fazendo com que ficasse claro o que estava acontecendo. "Entre mim e o lado de fora existe uma porta de vidro. Acho que terei que quebrá-la", ele pensou, mas, em seguida notou que ela estava destrancada. O rapaz então riu de sua própria estupidez. Era tão óbvio. Sentiu um alívio por perceber que não estava louco e que também não estava preso no bar até o amanhecer.<br />
Riu novamente, lembrou de seu dia, de seus dilemas literários e acabou ficando um pouco melancólico de novo. Nada demais.<br />
Interrompeu seus devaneios, e enfim resolveu sair. Mais sangue e um dente quebrado. Deu de novo com a cara no vidro.<br />
<br />
<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-86067889361087742662016-07-20T17:27:00.000-07:002016-09-04T15:47:49.852-07:00Restos de dias passadosPrimeiro eu pensei que quando olho nos olhos das pessoas na rua, noto que eles são como janelas de uma casa abandonada. Em seguida, pensei que essa percepção devia ser um engano, a ser esclarecido a seu tempo.<br />
Entrei no ônibus e fiquei esperando que ele saísse do lugar. Pela janela eu via, lá fora, um homem que sorria como uma criança enquanto mijava na rua logo após ter baixado suas calças bem na frente de todos os passantes. Alguns fingiam que não estavam vendo, outros não fingiam nada. Veio correndo carregada de sacolas a mãe do rapaz, "você não pode fazer isso assim aqui na frente de todo mundo! já falei!" e subiu as calças do filho com a mão que estava livre. Ele não parou nem de rir nem de mijar. Bem atrás deles o verde das árvores estava emoldurado pelo azul ardido do céu, como numa pintura.<br />
Eu peguei uma caneta, um papel e anotei o seguinte: "Às vezes o dia parece um filme de terror. Outras vezes parece outra coisa. Quanto mais beleza há em meio ao terror, e quanto mais eu sei ser efêmera essa beleza, mais terror há no terror. Quanto mais de longe se pode ver o quão perto se encontram terror e beleza mais um acaba se passando pelo outro."<br />
O ônibus continuava parado. Decidi descer e ir andando mesmo.<br />
No caminho fui refletindo sobre minha anotação, sem ter certeza se eu deveria guardar ou jogar fora. No fundo, o problema era o mesmo de sempre, "e se fosse eu o menino mijando na rua? e se fosse eu a mãe do menino? do que depende a diferença entre eu ser eu e eu ser eles?".<br />
<br />
<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-18917437115418229762016-06-14T16:51:00.000-07:002016-06-14T16:51:10.575-07:00Contramão"Cada vez mais eu não poso deixar de ter a mais profunda certeza de que sou a única pessoa no mundo capaz de entender o que realmente acontece. " Foi isso que ele declarou enquanto secava os copos atrás do balcão, sem a menor alteração na expressão. Eu segurei o riso e ele completou, "Ou é isso ou então minha mente produziu uma forma tão enorme de engano, que me coloca na posição de ser aquele que comete, sem nenhuma dúvida, o maior erro do mundo", e pegou mais copos sujos deixados sobre a pia pelos clientes.<br />
Em seguida, ele percebeu que eu não tinha mesmo dinheiro para pagar pelo café e disse que não tinha importância porque, de um ponto de vista capaz de ultrapassar a banalidade das coisas cotidianas, aquela nossa conversa, o café, o dinheiro, eram o mesmo que se nenhum de nós tivesse sequer saído de casa naquele dia, ou que ninguém houvesse dito nada, ou que nem meus pais nem os dele tivessem tido a oportunidade de fazer-nos nascer no mundo. Baseado nesse argumento, ele não só dispensou o dinheiro que eu lhe devia, como me serviu mais um café inteiramente grátis. Diante disso, eu achei que seria importante testar superficialmente a realidade daqueles acontecimentos. Do meu lado estava um cachorro amarelo e ele parecia querer muito beber café. Eu coloquei a xícara no chão e ele bebeu enquanto balançava o rabo.<br />
Ao se deparar com essa situação, o rapaz que enxugava os copos sofreu um conflito na mente.<br />
Ele percebeu que caso ele se recusasse a separar no seu entendimento a realidade em unidades imaginárias pequenas ligadas por fios invisíveis, cada qual feito de um material específico, então, sempre lhe faltaria a palavra mais adequada para dizer de forma compreensível seus pensamentos, e isso acabaria causando angústia dentro de seu estômago e do cérebro. Bom, por outro lado, ele percebia que a paz de espírito somente poderia ser produzida uma vez que sua visão de mundo realizasse a volta necessária para que ele se tornasse capaz de assistir e esperar que o cachorro bebesse todo o café sem que começasse, contra sua intenção, a brotar por detrás de seus olhos, duplicações e extensões daquele acontecimento.<br />
Assim que concluiu a reflexão, notei que foi soprado pra dentro de seu ouvido, como que pelo próprio Deus, o seguinte: "seu pensamento sobre o mundo é todo muito certo. No entanto, quanto mais ele se torna autoconsciente mais ele contradiz a si mesmo. A única forma de realizá-lo de forma plenamente coerente, portanto, será eliminando-o, o que, obviamente, não poderá ser resultante de nenhum projeto porque, nesse caso, estaria necessariamente implicado um procedimento de avaliação constante das relações entre avanço e retrocessos - Isso levaria a coisa toda à falência." Foi isso e depois parou.<br />
O rapaz, então, começou a lavar mais copos e eu pensei que se naquele momento ele pacificamente rasgasse seu corpo com uma das facas deixadas sobre o balcão, seu sangue desceria pelo ralo junto com água e sabão. Essa atitude, segui pensando, naquele momento, não seria, talvez, acompanhada de nenhuma dor, mas seria condição inevitável da santificação de seu ser, que enfim superaria a dualidade corpo-mente. Mas, logo em seguida, achei melhor não, que melhor seria que ele continuasse lavando copos, e foi o que ele continuou fazendo mesmo. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-79253907744426076272016-04-28T11:12:00.001-07:002016-04-28T11:12:29.837-07:00Inimigos imagináriosEssa coisa que me toma de repente é como uma corrente marítima, como ondas que se movem de dentro pra fora. Forçado não sei por qual crença a permanecer sentado no mesmo lugar em quanto o dia passa, meus nervos vão ficando completamente eletrizados. Meu corpo sofre de uma epilepsia latente, quer se sacudir, gritar, comer, morder as coisas, quebrar as coisas. Não há, diferente do que pode parecer, nisso nenhum ódio. O que sinto é uma avalanche de impulsos frenéticos que me impelem a fazer, contra minha vontade, um monte de coisas e garantir que todas elas sejam bem feitas e rendam bons frutos. Eu faço um pouquinho de cada uma dessas coisas o dia inteiro. Vou revezando, primeiro uma, depois outra, antes que a dedicação exclusiva a uma única acabe realizando seu potencial - existente na mesma medida em todas elas - de me matar de tédio.<br />
Todos os dias depois do almoço chega o momento em que me canso um pouco, fico cheio de despropósito. Nesse momento eu saio para dar uma volta pela cidade. À essa altura eu já sei bem que por mais ruas que eu percorra, nada, nem um sorvete, nem uma cerveja, nem um café, nem mesmo um pastel, tem o poder de dissipar esse cansaço, esse tédio.<br />
Isso acontece porque não importa com o que eu me entretenha, no fim das contas, mesmo que indiretamente, mesmo que da boca pra fora sendo contra, enquanto eu jogo as regras do jogo, em algum momento eu terei que retornar ao ponto onde estava. Terei que me sentar diante do computador, abrir um caderno, tomar notas, esboçar cronogramas, orçamentos miseráveis, elaborar planos de fuga.<br />
E se eu tivesse, mais uma vez ainda, um trabalho de verdade? Então eu estaria pior, embora a rotina acabasse me levando a sentir como se eu não existisse, ou que existisse menos, ou seja, que eu existisse obviamente, sem duplicações simbólicas, de forma indubitável, prática, rumo ao fim de semana, "faço, logo, existo".<br />
Outro dia, na mesa de um bar, acabei ouvindo conversa alheia. O rapaz dizia a um homem, que pela calvície devia ser seu pai: "Acredito, no ponto em que me encontro, que daqui em diante, pra ser sincero, devo enrolar e enrolar bastante, e assim o tempo vai passando. Quando parecer que já perdi muito tempo na vida, quando for a hora de mergulhar no arrependimento e no desespero, então será também, julgo eu, tarde demais e tempo de partir." O homem calvo continuou apenas olhando o filho, que aproveitou para concluir: "Chegado o momento, eu irei, é claro, ainda que tomado por essas doenças tristes e incuráveis que têm os velhos, escalar a Montanha Sagrada em busca da iluminação."<br />
Ao ouvir um relato dessa natureza, pedi no balcão um torresmo e mais um café, se me lembro bem. Enquanto mastigava eu pensei, "está muito bem, mas quando vier a ditadura, o velho sábio será capturado do topo da Montanha Sagrada, denunciado talvez por seus próprios parentes ainda vivos e decepcionados. Sob tortura terá que explicar do que fugia, em seguida sendo forçado a revelar o esconderijo de seus supostos comparsas subversivos. Já sob a ditadura do proletariado, acabará sendo tomado por isolacionista anti-classista, adepto de ideias reacionárias, praticante de um naturalismo burguês. Não escapará ao fuzilamento sumário.<br />
Esse tipo de devaneio acaba, afinal, consumindo muito a mente. É daí que brotam aquelas ondas frenéticas. O tempo passa enquanto aqui dentro são produzidos pensamentos que têm vida própria. Frequentemente, eu os alimento com mais literatura, em busca de que seja possível fazê-los sobrar no mundo. É importante que os pensamentos sobrem no mundo sem que seja preciso dar sobre eles maiores explicações, esclarecer detalhes, revelar significados ocultos. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-77077053471923814422016-04-04T19:14:00.001-07:002016-04-04T19:22:31.221-07:00Imagens de sonhosEra como se toda vez que eu tentasse dormir alguém imediatamente acendesse a luz e eu não conhecesse nenhuma forma para apagá-la eu mesmo, a não ser quebrando a lampada, e que quebrar a lampada pudesse causar algum tipo de transtorno incalculável.<br />
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Nunca mais será possível, parece, descrever os pássaros, as árvores, o ruído da chuva caindo sobre o telhado. Necessariamente, ao aroma do café passado no início de uma tarde ensolarada estará misturada a lembrança de tudo o que não foi e que poderia ter sido.<br />
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Depois eu tive um sonho: As palmeiras imperiais tem muitos metros de altura e mais de cem anos de vida. Uma delas tinha bem perto da base um buraco que foi cuidadosamente acimentado pela prefeitura. Fico pensando que , em vez disso, seria preferível deixá-lo aberto para que em seu interior pudessem acomodar-se bichos, famílias, estudantes, bandidos e até freiras. Seria uma boa oportunidade de abrigar do frio, do calor e da chuva esses viventes inúteis.<br />
Em seguida a palmeira acabaria apodrecendo inteiramente de dentro para fora e desabando bem no meio da rua.<br />
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Ele estendeu o braço até o prato de farofa e serviu-se. Depois encheu o copo com mais vinho e começou, "é claro que morrer é uma coisa que não me interessa. Mas, começando pelo começo, não é possível deixar de acreditar que estou absolvido de tudo o que sou e de tudo o que não sou, simplesmente porque meu nascimento me colocou num ponto e não em outro."<br />
"Certo", eu disse, e continuei anotando. O vinho derramou-se sobre a mesa e formou o rosto de Cristo, só que invertido.<br />
Os visitantes, aos poucos, foram retornando à sala. Eles estavam brancos e suando sem parar. O representante deles se esforçou para dizer algumas palavras, ainda que não pudesse evitar tremores contínuos. Eu anotei o que ele disse e foi o seguinte, "nós decidimos que se o senhor tivesse apenas um braço, em vez de dois, isso não te daria o direito de usar apenas um talher à mesa. No entanto, nós admitiríamos que agisse dessa maneira."<br />
Após essas palavras, todos sorriram e seguiram a refeição sem novos incidentes, até que o visitante-chefe soltou um pequeno grunhido e declarou "acredito que meu cérebro está agora se dividindo em dois!" O volume de sua cabeça expandiu-se visivelmente para comportar o novo cérebro que lhe havia nascido. Cada um dos cérebros tinha seu próprio modo de ver, ainda que ocupassem a mesma cabeça. O visitante-chefe fechou os olhos com serenidade e ficou claro a todos que a partir daquele momento ele bastaria a si mesmo para sempre.<br />
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Quando cheguei em casa tirei do bolso os guardanapos em que havia feito minhas anotações sobre aquela ceia inusitada. "Não encontro solução, não tem jeito..." Durante algum tempo quebrei a cabeça tentando encontrar um lugar seguro, coerente, no qual iam dar aqueles acontecimentos que havia observado. "Tudo tem um sentido, tem que ter..."<br />
Impossível.<br />
Decidi então que seria melhor jogar fora aqueles papeis mal escritos. Deixar tudo isso de lado e permanecer em silêncio. E o silêncio, em si mesmo, engendrou o sentido.<br />
Ainda assim, em algum lugar, persistiu a pulga atrás da orelha e o desejo de desassossego. Nova decisão: escrever, "só mais uma vez", sobre esse silêncio, tão difícil de alcançar. Então escrevi sobre o silêncio, sem me dar conta de com isso tê-lo, irremediavelmente, quebrado. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-83073716341756758842015-12-13T15:59:00.001-08:002018-05-28T06:50:32.548-07:00Reinversão"Outro dia eu pensei que estava com os olhos abertos, mas daí eu abri eles e então percebi que estavam fechados", falou e rompeu na gargalhada mesmo tendo a boca cheia de comida e a comida caía pra fora em cima da mesa. "Ótimo..." pensei.<br />
A sala estava completamente vazia, mas isso não resolvia nada. As paredes ainda estavam lá marcando os limites. Pela janela dava ainda pra ver os móveis jogados no meio da rua atrapalhando a passagem das pessoas. "Tanto faz, elas não sabem mesmo pra onde vão". De todo modo, esse transtorno não era suficiente para que essas pessoas de fora fossem completamente impedidas de seguir seus caminhos. Elas acabavam passando, desviavam da escrivaninha atravessada no chão, escorregavam por cima dos livros amontoados na calçada, colocavam de lado algumas cadeiras e camas e seguiam adiante.<br />
Resolvi recolher as coisas, colocá-las de volta pra dentro. Quando percebi estava deitado no chão, descansando. Fingia que estava acordado quando ouvia algum barulho. Essa atitude durou por todo o tempo. "O tempo, então, perdeu-se" pensei.<br />
Quando me levantei do chão notei, no entanto, que estava enganado.<br />
Algumas pessoas que passavam ajudaram a atear o fogo sobre as coisas que permaneciam espalhadas pela rua.<br />
Aquelas coisas, depois de algumas horas, foram completamente reduzidas a cinzas e puderam assim ser facilmente varridas para dentro. "Inevitavelmente, de qualquer outro modo, os móveis teriam continuado a ser peças separadas. Apenas agora, que já são cinzas, eles existem como unidade. As coisas se tornaram pacificamente indistinguíveis umas das outras. Ótimo! Mas, nessas condições, isso já não presta mais pra nada. São apenas cinzas, não é mesmo?" Essas conclusões breves eu disse ao dono do bar da esquina, cuja postura era de uma indiferença indisfarçável.<br />
Tudo isso teria, no dia seguinte, desdobramentos, consequências, prosseguimento, negação. Mas já era fim da tarde e o sol que logo em seguida se pôs, inesperadamente, não voltou a nascer. De qualquer forma, ninguém poderia adivinhar que justamente agora seria assim.Unknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-64622961094749443892015-11-27T10:23:00.000-08:002015-11-27T10:28:31.348-08:00DeslibertamentoDento do quarto o pó se acumula sobre os móveis e sobre objetos antigos já sem nenhuma serventia. Os livros começam a se embolorar. Suas páginas se tornam uma massa informe cheia de palavras que já não podem mais ser lidas. Tornaram-se, enfim, adubo, para plantas inexplicáveis que vão crescendo de dentro deles e derramando seus ramos pela capa até alcançarem o chão.<br />
Nenhuma palavra dita ao longo do dia. De forma alguma isso significa que elas deixaram de existir no interior da mente. Lá elas vão fermentando, produzindo ideias alucinógenas. Impossível permanecer quieto na cadeira. Me levanto, ando pelo quarto e percebo que as paredes estão muito próximas. Melhor seria ir até a rua.<br />
Me lembro de ter visto, uma vez, duas lontras numa jaula, e elas percorriam correndo todo o perímetro em torno do mini-lago clocado ao centro. Havia também umas plantas que o planejador da jaula deve ter julgado que simulavam a natureza. As pessoas em frente à jaula rangiam os dentes, nervosas com aquele movimento frenético, sem fim e sem saída. Tapavam os olhos das crianças, e quando elas perguntavam "mãe, mas porqu..." tapavam-lhes também a boca. Como poderia alguém exigir que aquelas lontras decorativas ficassem paradas? Seria melhor, seria mais inteligente, mais confortável até, uma vez que a corrida era evidentemente inútil.<br />
Eu ia pensando nisso quando lá de fora uma voz grossa começou a dizer muito alto "A vida estraga o homem e os animais. Presos em seus escritórios desenvolvem manias e obsessões. Certos pássaros exóticos, por exemplo, quando domesticados escapam da morte acidental a que estariam sujeitos na natureza, mas desenvolvem sentimentos de posse, vaidade, posições políticas." Era como se meus pensamentos tivessem sido adivinhados. Olhei pela janela e ele estava lá, encostado no poste, embriagado de bobagens, falando suas verdades. Imediatamente corri para a cozinha e peguei uma garrafa. Quando voltei ele já não estava mais. Joguei, mesmo assim a garrafa, que estourou no poste espalhando cacos em vão.<br />
Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-54730383598218202742015-11-14T12:38:00.001-08:002015-11-14T12:38:16.000-08:00LateralidadesA viagem era muito longa, impossível permanecer sentado tantas horas sem ser tomado por grandes incômodos. Percebi, felizmente, que quando eu me concentrava apenas nos sons feitos pelas patas dos cavalos ao chocarem-se com o asfalto, o tempo passava sem dúvida mais rápido. Na verdade, melhor ainda, ele deixava de existir. "O que aconteceria se eu me dedicasse, daqui em diante, apenas a ouvir os sons das patas dos cavalos batendo contra o asfalto?" Esse pensamento trazia uma sensação tão agradável, que imediatamente eu fazia um pequeno esforço para me desviar e prestar atenção em qualquer outra coisa, até que de novo viesse o mal estar.<br />
Eu ficava olhando as casas à beira da estrada conforme a carroça ia deslizando de uma cidade para outra. Dentro de cada casa havia um certo tanto de pessoas e não havia diferença nenhuma entre elas. Elas deixavam as luzes acesas quando anoitecia, depois apagavam e iam dormir. Havia os doentes que passavam por dores noturnas incontroláveis e os bebês pequenos que choravam por seus próprios motivos. Ainda assim, claramente, eles eram sempre os mesmo em todas as casas e todas as cidades, também iguais umas às outras.<br />
Uma parada foi feita em um galpão enorme no qual havia pelo chão inúmeras coisas quebradas impossíveis de identificar. Alguns trabalhadores em uniformes horríveis estavam sentados no chão mascando pedaços longos de mato. Um deles se aproximou da carroça com uma alegria inexplicável arrebentando no meio da escuridão. Ele era o responsável por limpar os cavalos, e ele cantava músicas inventadas de sua própria cabeça enquanto esfregava o pelo dos animais exaustos. Quando acabou ele disse "boa noite!" aos passageiros, dos quais não obteve resposta.<br />
"A ideia de paz interior de Santo Agostinho é muito oportuna aos dias de hoje. Na antiguidade, mesmo um escravo podia ser livre sendo escravo, caso fosse livre em seu interior." Foi isso que eu falei pra moça ao lado. Ela não achou a menor graça, como se nunca tivesse ouvido nada mais idiota em toda sua vida, e depois voltou a dormir. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-6122622729903950292015-10-27T17:01:00.001-07:002017-06-28T12:37:24.752-07:00Considerações sobre o problema da ação no mundoI- Observações parciais sobre a liberdade : elementos entre Henry David Thoreau e Henry Miller<br />
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Esse ensaio pretende discutir a liberdade individual tal como é entendida por H. D. Thoreau e Henry Miller em suas obras <i>Walden </i>e<i> Krishnamurti. </i><br />
A validade da comparação tem como motivação o fato de, primeiramente, tratarem-se de textos nos quais é celebrada, com todo o entusiasmo, a liberdade individual como força realmente transformadora. O argumento, facilmente enquadrado como liberal e, portanto, incapaz de resolver em toda sua extensão o sofrimento social humano, parte, entretanto, de dois desajustados distantes da ideologia do mérito, nascidos nos Estados Unidos.<br />
Henry David Thoreau (1817-1862), em seu livro <i>Walden</i> <i> </i>faz o elogio do indivíduo capaz de transformar a si mesmo ao retirar-se da sociedade em favor de uma vida nos bosques. Ao avaliar sua experiência realizada quando tinha por volta de trinta anos, o autor enfatiza o despropósito da vida média americana, interminavelmente consumida pelo trabalho e, ainda mais, alimentada pela esperança ilusória de que um dia chegará o momento de colher os frutos de tanto esforço para, enfim, descansar. Ao criticar a escravidão negra que a seu tempo ainda persistia nos estados do sul, Thoreau aproveita para evidenciar que o pior capataz é aquele que cerceia a si mesmo, o que não faltava entre os brancos do norte.<br />
Henry Miller (1891-1980) dedicou um dos capítulos de seu <i>Books in my life</i> à reflexão sobre o indiano Krishnamurti (1895-1986), o qual não chegou a conhecer. O problema do indivíduo, de fato é recorrente na filosofia indiana contemporânea. Seu sucesso comercial no ocidente aparece, portanto, no mesmo nicho de mercado ocupado pela psicanálise, graças à ansiedade generalizada existente entre os homens e mulheres daqui para resolverem sua profunda fragmentação. Como adverte o próprio Krishnamurti, a filosofia indiana, que aqui é vendida como literatura esotérica, ao lado da auto-ajuda e dos livros motivacionais, nada pode fazer, desse modo, contra nosso mal-estar. O que acontece é que, como aponta Krishnamurti, a difusão, por exemplo, da meditação entre os homens de negócio atendeu à demanda de fazer acalmar para ajudar a ganhar mais dinheiro. Nesse sentido, no ocidente a meditação é usada como medicação, utilitariamente, deslocada de sua natureza original. Mais que um meio para a obtenção de um fim específico - e estranho ao meio - na Índia a meditação é parte de um modo de vida no qual o <i>eu </i>se encontra consigo mesmo.<br />
Henry Miller se inspira profundamente nos ensinamentos de Krishnamurti, sobretudo ao deparar-se com a ideia de que o homem é o único libertador de si mesmo. Em vez de passar a vida toda dedicado a transformar o mundo para que, aí sim, passem a existir condições para a mudança do indivíduo, Krishnamurti propõe que está no próprio homem o poder para algo, na verdade muito simples: ser ele mesmo. Nesse sentido, minha liberdade para ser eu mesmo é muito diferente de poder ter a liberdade de ser quem eu quiser ser, o que, aliás, por não ter sentido, deverá levar a um contínuo processo de frustrações.<br />
Ponto comum para Henry Miller e Thoreau é a negação da autoridade, seja ela qual for. Thoreau duvida abertamente que os velhos tenham realmente algum bom conselho a dar. Eles são, para o autor, os guardiões de velhos medos, transmissores de modos cautelosos cuja função será refrear os impulsos para experiências criadoras. Henry Miller se apoia no ideal de Krishnamurti de que não deve haver nenhum mestre, não deve haver quem queira seguidores. Recusando a posição de mestre recusa-se a vaidade, que ao cristalizar imagens do <i>eu</i> frequentemente muito distantes da realidade, aparece como mais uma prisão. Se há homens livres, seu papel é contribuir para a libertação de todos. Henry Miller destaca ainda que, para Krishnamurti, a vida é de uma simplicidade brutal. É o apego aos emaranhados teóricos propagados pelos "mestres" que faz amar a busca pela resposta difícil que será solucionada em algum ponto indeterminado do futuro. Para ver a resposta simples é preciso duvidar de tudo o que se diz ser certo ou errado. Tudo. De fato, é inevitável que esteja perdido e que se perca cada dia mais quem quer que se ocupe em citar autoridades e se identificar a elas, depositando confiança cega em suas palavras. Em pouco tempo uma doutrina religiosa, teórica ou política que eu me veja impelido a defender tomará posse de algum espaço interior meu importante para definir o que sou. Acontece que ela veio de fora.<br />
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II- Sofrimento humano: apontamentos acerca do filme 12 anos de escravidão<br />
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Será possível, então, independente da situação em que eu me encontre, tomar as rédeas do destino? Evidente que não. Há na história inúmeros exemplos de violência e opressão que reduzem drasticamente o alcance da ação individual na direção da liberdade. A escravidão negra colonial, sem dúvida aparece como um dos casos mais graves de destruição da potência humana.<br />
Ao abordar o assunto, o filme 12 anos de escravidão (2013) propõe, acima de tudo a sensibilização pelo choque que a exposição direta da violência é capaz de provocar.<br />
Acrescenta-se a isso uma certa sutileza no desenvolvimento da narrativa, cuja qualidade é provocar, mais que o mero choque da violência, o desespero pela asfixia na desgraça, uma vez que permite ao espectador imaginar-se em uma situação inescapável. Nesse sentido coloca-se diretamente a questão daquilo que o indivíduo é capaz de fazer por si, quando os escravos percebem que devem adotar estratégias de cooperação e obediência a fim de sobreviverem, em vez de se revoltarem contra seus opressores. Essa questão é colocada em tensão com as recorrentes cenas de abuso e castigos corporais, - que levam a mente a imaginar sua variedade e intensidade intermináveis - sempre acompanhados por uma passividade sem saída da parte dos escravos, já amortecidos, mesmo em seu íntimo, pela força da dominação. Essa tensão surge como elemento do filme que tem como finalidade provocar no espectador irritação e empatia, que por ser nele - ainda mero espectador - superficial, o leva a fantasiar sobre a rebelião que faria se fosse ele o escravo. A reflexão decorrente desse sentimento, obviamente acaba por gerar, finalmente, depressão, dado que não se trata apenas de um filme mas, sabidamente, desde o início, de um filme sobre acontecimentos reais existentes ao longo de séculos. O espectador, nesse momento, se dá conta de que seu desejo de rebelião acabou por criar uma esperança de transformar o passado para refazê-lo de um jeito melhor. Esse último passo da sensibilidade diante do filme acaba por converter qualquer disposição em pessimismo e impotência, o que acompanha o próprio desfecho do filme, assim que nos lembramos que o passado não pode ser mudado - e talvez nem redimido.<br />
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III- Inevitabilidade do mal e sensação de beco sem saída: arbitrariedades sobre Lima Barreto e Jean-Paul Sartre<br />
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Conforme não se pode deixar de ver, portanto, que o mal está em todos os lugares, não é de se espantar que exista entre muitas pessoas sãs uma total desesperança com o mundo. Essa perspectiva leva ou ao suicídio ou à variações entre cinismo e masoquismo. Quanto à segunda opção - que é a que interessa nesse momento - trata-se de uma disposição segundo a qual as pessoas desenvolvem fascínios estéticos por aquilo que as faz sofrer, o que, de modo algum ameniza o sofrimento.<br />
Em seu livro <i>A idade da razão</i>, Jean-Paul Sartre criou Mathieu, cujo principal objetivo era ser completamente livre. As circunstâncias do mundo, no entanto, cada vez mais vão frustrando as expectativas de Mathieu e, mais que isso, vão levando-o a acreditar que sua liberdade ou é falsa ou não lhe traz nada de bom. Lima Barreto em seu <i>Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá</i> apresenta Augusto Machado que, como Mathieu é um intelectual com problemas de intelectual. Ele vê a maldade, a injustiça e a incompreensão consolidadas e disseminadas pelo mundo. A ponto de não suportar seu entendimento das coisas Augusto Machado observa tragicamente a (suposta) tranquilidade da vida dos pobres e ignorantes que, apesar de terem seus sofrimentos, levam suas vidas cotidianas sem grandes preocupações, cheios de distrações leves, bastando-lhes qualquer banalidade. Ele deseja, então, ser outro, ter uma mente simples mas, imediatamente, sabe que não é possível: está condenado a pensar demais sobre todas as coisas. O mesmo acontece ao Mathieu de Sartre. Ao perceber que sua valiosa liberdade era bastante duvidosa e certamente sem sentido, ele se vê incapaz de tomar atitudes concretas na direção da transformação. O problema para Mathieu é que atitudes concretas implicariam incoerências, contradições, e dilemas entre convicções inconciliáveis no interior da ordem abstrata de sua mente.<br />
Mathieu e Augusto Machado estão paralisados diante da relação entre o que é e o que poderia ser - sem contar o desejo de que certas coisas não tivessem sido. A beleza dessa paralisia é inegável.<br />
Sartre e Lima Barreto morreram esperando por um mundo melhor. Sartre bem que fez o que estava a seu alcance para mudá-lo, mas dificilmente se poderia dizer que conseguiu muito mais que acumular egocentrismo e amargura. Lima Barreto acabou por encenar na própria vida a tragédia de sua literatura.Unknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-85782735608152794112015-10-24T15:01:00.001-07:002015-11-14T12:05:06.516-08:00TransfiguramentosNo muro de um prédio antigo alguém pichou "Vamos devagar porque temos pressa". Dois pintores, sem ler o que pintavam, iam pintando de bege o muro histórico, devolvendo a ele sua pureza original do século XIX. Estavam apenas fazendo seu trabalho.<br />
Então começou a chover e de repente a chuva já era muita. Não demorou para que ela lavasse da parede a tinta nova, a pichação, a tinta velha. Em seguida, dissolveu como açúcar os tijolos, os pintores e o prédio inteiro, que transformados numa mistura líquida nojenta de café com leite, desceram pelo bueiro.<br />
Do outro lado da rua um velho mendigo assistia ao acontecimento como se, daquele momento em diante, estivesse tudo acabado. Sem poder fechar a boca, ele estava paralisado segurando seu bloco de notas e sua lapiseira. Percebi que ele não poderia mais continuar com suas anotações. Os olhos estavam fixos no vazio que sobrou depois da chuva.<br />
Quando eu era criança aprendi que não faz bem sentar na calçada nem colocar a mão nas paredes e nos postes da rua porque os mendigos ficam sempre se encostando neles e transmitindo doenças. Era como se eles sujassem a cidade e não o contrário. Mesmo assim achei importante saber o que ele estava escrevendo, e que agora já não tinha mais motivos para continuar. Então me sentei ao lado dele e notei que ele estava pensando que era uma pena o fim da melancolia irônica destruída pela chuva. "Vamos devagar porque temos pressa", era uma bela lição, ainda mais por ser ignorada por todos os passantes, tanto quanto por quem quer que tenha pago pintores para ocultá-la.<br />
"De todo modo", disse a ele, "talvez não valha mesmo a pena, que acha?" e, em seguida, argumentei "Agora, afinal, há espaço para coisas novas, aberto pelo próprio acaso, talvez..." O velho não se animou a responder nada e, inexplicavelmente, começou a chorar como criança. Não podia mais parar. Claro, não demorou muito para que eu entendesse que aquilo não tinha solução. Decidi, então, pegar um livro na minha mochila. Abri e fiquei lendo. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-14498734424366545912015-09-28T07:37:00.000-07:002015-09-28T07:37:13.666-07:00Otimismo parte 3: a inconformidadeSaí da cama sem nenhuma pressa, eram quase nove horas. Ontem pedi demissão meio como surpresa pra mim mesmo, sem planejamento, sem avaliação do que se perde e do que se ganha. "Se todo mundo pudesse fazer assim, a civilização desabaria?", pensei.<br />
Saí pra rua, andando sem lugar definido para ir, e conforme minha latinha de Bavária chegava ao fim, alguns pensamentos me faziam rir sozinho. Eu tentava disfarçar dos passantes o riso sem propósito visível.<br />
Entrei no supermercado para comprar mais uma e me deparei com a vidinha besta e mal paga das moças dos caixas. Ocupadas com serviço tedioso, distraídas com intrigas vazias, mesquinharia, enquanto lá fora o sol ia fritando o asfalto. De todo modo, me limitei a recusar a Nota Fiscal Paulista e entregar dois reais em moedas miúdas. Já saí bebendo e fui na direção do mar.<br />
Me sentei e fiquei lá olhando as ondas. Algumas imagens de futuros possíveis vinham chegando e eu não estava interessado. As referências do passado, por sua vez, iam se dissolvendo fácil na cerveja bebida antes do almoço. A inconsistência do instante, então, se mostrou com solidez. "O agora, ao negar-se a si mesmo, enfim apresenta-se como o real de fato", pensei.<br />
Tomei mais um gole e decidi andar, mas assim que me levantei do banco encontrei debaixo dele um pedaço de papel com coisas escritas à lápis. Era um bilhete que dizia o seguinte:<br />
"Aquilo que você gosta em mim é justamente o que eu não posso mais ser. As coisas que eu digo, que você considera agradáveis de se ouvir, são bem aquelas que agora já não me interessam. O que você acha que precisa me contar eu já não quero saber. Que fazer então com toda essa nova inconformidade?"<br />
Assim que acabei a leitura do bilhete não pude evitar achar muito estranho que uma pessoa tivesse a insensibilidade de escrever tais grosserias a quem quer que fosse. Guardei o papel no bolso e segui o rumo.<br />
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Fechei meu livro e comecei, discretamente, a anotar as palavras ditas pelo adolescente. Ao perceber essa minha atitude, a mente do rapaz fez um de seus movimentos involuntários e por pouco ele não começou a se sentir como um grande sábio. Deixou que a coisa passasse pela mente sem alimentá-la.<br />
Decidi sair e pegar o ônibus. Ao meu redor quatro conversas eram distinguíveis. Elas tinham a função de contaminar o ônibus inteiro com ressentimentos e invejas inconfessáveis. O ódio que transbordava nos juízos ditos a respeito de terceiros ia preenchendo todos os espaços até que sufocasse mesmo os passageiros mais silenciosos. Claro, ao ouvir a história sobre a secretária do chefe, que é uma mulher "falsa, oferecida e incapaz de cuidar da própria vida", começou a brotar na mente da japonesinha sentada logo ao lado, sua lembrança sobre o tanto que era inconveniente a Rita, que todos os dias na faculdade precisava relatar quantos sapatos e vestido novos e não sei mais o que, tinha comprado e era muito caro, etc. Daí a japonesinha, sem perceber, logo estava rangendo os dentes e agarrando com ainda mais força seus cadernos.<br />
Desci do ônibus e comprei uma cerveja. "Isso não tem conserto."<br />
Com certeza ninguém faz por mal. Seria mais fácil se fizesse.<br />
Cheguei em casa e fui direto pro quarto. Minha cama não estava. Deitei no chão e comecei a ouvir um ruído. Era o prédio ao lado que estava desabando. Mais um ruído e caiu mais outro prédio, bem de frente, bloqueando a rua.<br />
Continuei deitado e senti paz de espírito.Unknownnoreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-14945574130570342492015-09-09T09:39:00.003-07:002015-09-09T09:39:56.893-07:00ImponderáveisO ônibus às vezes demora pra chegar. Os momentos de espera são sempre mais difíceis quando a gente acha que a vida tem um sentido. Uma vez abri um livro para transformar a espera em tempo útil. A leitura, no entanto, ia emperrada pelo pensamento insistente que dizia que fazendo isso eu encontrava sentido pra vida fora da vida, na vida escrita há décadas. Complicações.<br />
Melhor deixar de lado a literatura e observar as pessoas. Elas são sempre as mesmas, é uma fatalidade. Comprei uma cerveja e isso sim mudou as pessoas. O ônibus chegou e eu subi com a latinha aberta, nenhum problema.<br />
Mesma coisa é a fila do banco. Nos filmes essas coisas até acontecem, duram alguns segundos pra simbolizar o tédio. De outro modo, aparece alguém com a audácia de dizer algo extraordinário, puxar conversa. Na vida real isso seria um privilégio. Segue a espera. Às vezes a gente espera por algo importante, por algo que exige tempo mesmo. Já outra coisa é esperar para pagar uma conta, para resolver detalhes burocráticos, mal entendidos de contratos. Diante desses momentos inevitáveis, a sanidade depende da confiança na aleatoriedade despropositada da Vida. Pequenas alegrias irão compensar tais amolações.<br />
Quando chegou minha vez perguntei, "Mas e a soma das esperas todas? Há tempos curtos e tempos longos. Quero viajar no fim do ano que vem, por exemplo. Até lá preciso juntar dinheiro, resolver as coisas, finalizar compromissos." - "Esperando o que? Esperando por que?", respondeu o atendente. Peguei meu boleto e fui embora.<br />
<br />Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-83892183840497723402015-08-27T18:51:00.000-07:002015-08-27T18:51:07.485-07:00RefluxosNão ter compromissos nem urgência, às vezes pode ser positivo, por exemplo, nos dias em que acabamos entrando no ônibus errado. Em vez de pedir desculpas ao motorista e descer o quanto antes, é muito mais produtivo, aceitar o descuido inexplicável como destino e permanecer para saber onde vai dar. Basta tomar alguns cuidados. <div>
Quando cometi esse engano semana passada, acabou que o ônibus foi me levando para um lugar onde não ia já há muitos anos. Percebi logo que era justamente o bairro onde morei por toda minha infância e início da adolescência. Imediatamente percebi que as casas, prédios, árvores e o próprio traçado das ruas, estavam impregnados de alguma substância maligna que me dava vontade de vomitar.</div>
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Claro, isso não foi de se estranhar. Bruscamente, sem que eu soubesse pra onde estava indo, me deparei com todas aquelas coisas antigas, misturadas a coisas novas e estranhas, e descobri que elas guardavam nos próprios tijolos o testemunho do meu surgimento no mundo.</div>
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Quando o ônibus passou na frente do prédio em que morei, eu estava pensando sobre quantas pessoas tinham se mudado também, ou morrido, ou vindo morar ali, "quem estaria dormindo no meu antigo quarto?!" Bem nesse momento entrou no ônibus uma antiga moradora do prédio, que era conhecida por ser louca. Aproveitei para descer.</div>
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Imaginei que seria doloroso esperar por outro ônibus, então decidi ir andando até o centro. E, de fato, conforme ia deixando para trás o bairro da infância e me aproximando das regiões simpáticas do centro, ia sentindo alívio. "Aquilo tudo continua lá", concluí. Pelo menos tá longe.</div>
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Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-30772294374705570482015-08-21T07:55:00.000-07:002015-08-21T08:02:52.171-07:00Otimismo parte 2: a desintegração"Jesus pra mim é um amigo", ele disse e depois pediu mais um pastel. A moça concordou e anotou o pedido. "Mas pastor é ladrão, engana as pessoas". A moça concordou de novo. Mais pro lado um velho ia ouvindo a conversa e pensando que quase sempre as pessoas se enganam sobre as coisas que dizem. Na maioria das vezes não se cogita que aquilo que se diz não tem nada a ver com as verdades das coisas. De todo modo, é justamente isso que faz alguém ser uma pessoa e não outra. Essas conversas são sempre um pouco cansativas, de modo que decidi ir para outro lugar.<br />
O sol estava muito forte e me fez entrar na igreja para me esconder. Era dia das mães e o padre estava falando sobre a Virgem Maria que, segundo ele, teve uma maternidade muito conturbada desde a gravidez até a morte do filho. Embora o assunto fosse sério, como de costume, às crianças é permitido correr dentro da igreja. É sempre impressionante observar que algumas delas são capazes de correr e, ao mesmo tempo, darem atenção ao sermão. Foi desse modo que durante a explicação sobre a Virgem, uma menina saiu da brincadeira olhando curiosa para um bêbado parado perto da porta. Ela perguntou para o bêbado o que teria acontecido caso Maria tivesse, espontaneamente, abortado. "O Cristo, então não teria nascido", veio como resposta indiferente.<br />
Eu saí da igreja e subi na bicicleta. Pedalar no meio dos carros, na contra mão, quando é preciso, é sempre uma sensação muito interessante. Se a mãe fosse avisada a respeito disso ela não dormiria, certamente, mais uma noite sequer.<br />
Mas e se a Virgem tivesse abortado? Eu pensei que eu gostaria de acreditar que às vezes não há nenhuma diferença entre uma pessoa fazer uma coisa e não fazer nada - ou fazer o contrário. Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4720148866098713129.post-60894495252311115072015-08-13T19:40:00.000-07:002015-08-13T19:52:09.301-07:00OtimismoA chuva caiu tão abundante ao longo de toda a noite, que em alguns momentos tive a impressão de que alguém teria deixado por acidente o chuveiro ligado antes de dormir. O dia amanheceu ainda todo encharcado e cinza. O denso silêncio que que reinava por dentro e por fora de todas as coisas só era cortado pelo ranger terrível de uma furadeira ou qualquer outra ferramenta elétrica com a qual alguém realizava, talvez a umas três ou quatro casas longe daqui, logo pela manhã, algum trabalho furioso.<br />
De repente me dei conta de que não quero mais escrever porra nenhuma. Quero continuar perdendo meu tempo apenas, da forma mais imbecil que pode haver. Um dia de folga por semana. É como uma concessão divina. Um dia perfeitamente maravilhoso em meio a uma rotina extenuante de trabalho sem sentido. Para não perder o costume, me levantei ainda cedo, café, pão com manteiga. Algumas coisas, afinal, ao não mudarem nunca, por mais que mude todo o resto, fazem com que o mundo se torne um lugar melhor. Em seguida verifico o e-mail e o facebook. Nada, cada vez menos. Ótimo.<br />
Resolvi sair enquanto não havia chuva. É mais um daqueles momentos de espera. A sensação de que o tempo vai passando lento se torna mais clara. Parei num bar de esquina, pedi uma coxinha e uma Sub-zero. Era um canto pitoresco da cidade. Acaba o asfalto, começa o paralelepípedo. A mudança aparentemente brusca faz, na verdade, coerência com a igreja que fica no meio da praça.<br />
O álcool produziu uma breve leveza na mente, propícia sobretudo para que fosse possível refletir acerca do desamparo e da inconsistência das coisas. O sacrifício da razão em busca da paz de espírito talvez seja, então, uma forma mais elevada de desapego, pensei. Ou de burrice.<br />
O restante do dia passou todo de uma vez, lavado por litros de água que iam escorrendo fácil das nuvens. Retornando ao ponto de partida, permaneci sentado à mesa jogando fora diversas conversas com a lentidão de quem acredita que viverá para sempre.Unknownnoreply@blogger.com1