quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Mais um café

Resolvi desligar a televisão e sair mais um pouco. Na rua abri um livro que ultimamente tenho gostado bastante. Umas dez páginas eu li e me fizeram tão mal que tive que parar. O café era requentado, provavelmente feito ainda de manhã. Na pia atrás do balcão a moça ia desfiando com as unhas um frango semi cozido. Ela fazia um esforço extraordinário. "Tá bom o café?", "sim". Muitas vezes a mentira vale mais do que se pensa.
Voltando à rua, a muralha de prédios obriga a dar voltas inúteis. Coincidentemente me agrada sempre gastar o máximo possível de tempo no caminho entre uma coisa e outra. As pessoas nas calçadas formam labirintos feitos de partes móveis. Poucas sensações se comparam ao que acontece quando nos empenhamos em andar o mais rápido possível entre elas sem atropelamentos. São obstáculos difíceis, sobretudo, as crianças que às vezes se soltam das mães para quase sempre rolarem sem nenhuma direção, geralmente atraídas por pombas ou coisas sujas jogadas no chão. Nessa situação o desespero das mães eventualmente acaba resultando bofetadas na cara de suas crianças. Toda mãe odeia sua criança em algum momento, é apenas consequência inevitável do amor incondicional. Talvez construir um ser humano dentro do próprio corpo ao longo de nove meses, dificilmente seja uma tarefa possível de compreender.
Invariavelmente, algumas colheres de açúcar são derramadas pra fora da xícara. Esse tipo de acidente gera ocasião para que as formigas trabalhem sem trégua. Vão levando os grãos de açúcar até que se acabem todos. São longas filas de formiga, trabalhando em cima do balcão, descendo até o chão, entrando em buraquinhos. Durante a atividade muitas morrem. Algumas são mortas por nós, que por vezes as matamos por distração, outras porque elas incomodam realmente. Algumas pessoas acreditam que as formigas tem alma, como todas as coisas vivas. Nem por isso é tão aceitável matar gatos quanto é, sem dúvida, matar formigas. Bem, então algumas delas morrem durante o trabalho que, ainda assim, segue acontecendo. Não é possível, superficialmente, dizer que tipos de formigas são aquelas que saem da fila para fazer uma oração ao lado do corpo das formigas mortas. No entanto há muitas que apresentam essa inclinação. Prestam suas homenagens e voltam ao trabalho, regrado como sempre.     

3 comentários:

  1. Nós também morremos pouco a pouco, como o açúcar que vai sumindo durante o trabalho. Interessante comparação...

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  2. Apesar da tragédia contida nas metáforas, ocultas e explícitas, ri do início ao fim.
    Um abraço, meu príncipe.

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