quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Descaminho

"No momento em que eu nasci não havia nenhuma necessidade para isso". A opinião era tão extravagante que nem uma só pessoa pode permanecer na sala. Os visitantes iam dando desculpas e saíam da mesa para ir ao banheiro, ou fumar um cigarro, ou buscar alguma criança na escola. Eu, ao contrário, decidi permanecer. Peguei um guardanapo, anotei o que havia sido declarado por aquele estranho, e depois perguntei "como é isso?"
Ele estendeu o braço até o prato de farofa e serviu-se. Depois encheu o copo com mais vinho e começou, "é claro que morrer é uma coisa que não me interessa. Mas, começando pelo começo, não é possível deixar de acreditar que estou absolvido de tudo o que sou e de tudo o que não sou, simplesmente porque meu nascimento me colocou num ponto e não em outro."
"Certo", eu disse, e continuei anotando. O vinho derramou-se sobre a mesa e formou o rosto de Cristo, só que invertido.
Os visitantes, aos poucos, foram retornando à sala. Eles estavam brancos e suando sem parar. O representante deles se esforçou para dizer algumas palavras, ainda que não pudesse evitar tremores contínuos. Eu anotei o que ele disse e foi o seguinte, "nós decidimos que se o senhor tivesse apenas um braço, em vez de dois, isso não te daria o direito de usar apenas um talher à mesa. No entanto, nós admitiríamos que agisse dessa maneira."
Após essas palavras, todos sorriram e seguiram a refeição sem novos incidentes, até que o visitante-chefe soltou um pequeno grunhido e declarou "acredito que meu cérebro está agora se dividindo em dois!" O volume de sua cabeça expandiu-se visivelmente para comportar o novo cérebro que lhe havia nascido. Cada um dos cérebros tinha seu próprio modo de ver, ainda que ocupassem a mesma cabeça. O visitante-chefe fechou os olhos com serenidade e ficou claro a todos que a partir daquele momento ele bastaria a si mesmo para sempre.

Quando cheguei em casa tirei do bolso os guardanapos em que havia feito minhas anotações sobre aquela ceia inusitada. "Não encontro solução, não tem jeito..." Durante algum tempo quebrei a cabeça tentando encontrar um lugar seguro, coerente, no qual iam dar aqueles acontecimentos que havia observado. "Tudo tem um sentido, tem que ter..."
Impossível.
Decidi então que seria melhor jogar fora aqueles papeis mal escritos. Deixar tudo isso de lado e permanecer em silêncio. E o silêncio, em si mesmo, engendrou o sentido.
Ainda assim, em algum lugar, persistiu a pulga atrás da orelha e o desejo de desassossego. Nova decisão: escrever, "só mais uma vez", sobre esse silêncio, tão difícil de alcançar. Então escrevi sobre o silêncio, sem me dar conta de com isso tê-lo, irremediavelmente, quebrado.

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