sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Deslibertamento

Dento do quarto o pó se acumula sobre os móveis e sobre objetos antigos já sem nenhuma serventia. Os livros começam a se embolorar. Suas páginas se tornam uma massa informe cheia de palavras que já não podem mais ser lidas. Tornaram-se, enfim, adubo, para plantas inexplicáveis que vão crescendo de dentro deles e derramando seus ramos pela capa até alcançarem o chão.
Nenhuma palavra dita ao longo do dia. De forma alguma isso significa que elas deixaram de existir no interior da mente. Lá elas vão fermentando, produzindo ideias alucinógenas. Impossível permanecer quieto na cadeira. Me levanto, ando pelo quarto e percebo que as paredes estão muito próximas. Melhor seria ir até a rua.
Me lembro de ter visto, uma vez, duas lontras numa jaula, e elas percorriam correndo todo o perímetro em torno do mini-lago clocado ao centro. Havia também umas plantas que o planejador da jaula deve ter julgado que simulavam a natureza. As pessoas em frente à jaula rangiam os dentes, nervosas com aquele movimento frenético, sem fim e sem saída. Tapavam os olhos das crianças, e quando elas perguntavam "mãe, mas porqu..." tapavam-lhes também a boca. Como poderia alguém exigir que aquelas lontras decorativas ficassem paradas? Seria melhor, seria mais inteligente, mais confortável até, uma vez que a corrida era evidentemente inútil.
Eu ia pensando nisso quando lá de fora uma voz grossa começou a dizer muito alto "A vida estraga o homem e os animais. Presos em seus escritórios desenvolvem manias e obsessões. Certos pássaros exóticos, por exemplo, quando domesticados escapam da morte acidental a que estariam sujeitos na natureza, mas desenvolvem sentimentos de posse, vaidade, posições políticas." Era como se meus pensamentos tivessem sido adivinhados. Olhei pela janela e ele estava lá, encostado no poste, embriagado de bobagens, falando suas verdades. Imediatamente corri para a cozinha e peguei uma garrafa. Quando voltei ele já não estava mais. Joguei, mesmo assim a garrafa, que estourou no poste espalhando cacos em vão.
 

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