terça-feira, 27 de outubro de 2015

Considerações sobre o problema da ação no mundo

I- Observações parciais sobre a liberdade : elementos entre Henry David Thoreau e Henry Miller

Esse ensaio pretende discutir a liberdade individual tal como é entendida por H. D. Thoreau e Henry Miller em suas obras Walden e Krishnamurti. 
A validade da comparação tem como motivação o fato de, primeiramente, tratarem-se de textos nos quais é celebrada, com todo o entusiasmo, a liberdade individual como força realmente transformadora. O argumento, facilmente enquadrado como liberal e, portanto, incapaz de resolver em toda sua extensão o sofrimento social humano, parte, entretanto, de dois desajustados distantes da ideologia do mérito, nascidos nos Estados Unidos.
Henry David Thoreau (1817-1862), em seu livro Walden  faz o elogio do indivíduo capaz de transformar a si mesmo ao retirar-se da sociedade em favor de uma vida nos bosques. Ao avaliar sua experiência realizada quando tinha por volta de trinta anos, o autor enfatiza o despropósito da vida média americana, interminavelmente consumida pelo trabalho e, ainda mais, alimentada pela esperança ilusória de que um dia chegará o momento de colher os frutos de tanto esforço para, enfim, descansar. Ao criticar a escravidão negra que a seu tempo ainda persistia nos estados do sul, Thoreau aproveita para evidenciar que o pior capataz é aquele que cerceia a si mesmo, o que não faltava entre os brancos do norte.
Henry Miller (1891-1980) dedicou um dos capítulos de seu Books in my life à reflexão sobre o indiano Krishnamurti (1895-1986), o qual não chegou a conhecer. O problema do indivíduo, de fato é recorrente na filosofia indiana contemporânea. Seu sucesso comercial no ocidente aparece, portanto, no mesmo nicho de mercado ocupado pela psicanálise, graças à ansiedade generalizada existente entre os homens e mulheres daqui para resolverem sua profunda fragmentação. Como adverte o próprio Krishnamurti, a filosofia indiana, que aqui é vendida como literatura esotérica, ao lado da auto-ajuda e dos livros motivacionais, nada pode fazer, desse modo, contra nosso mal-estar. O que acontece é que, como aponta Krishnamurti, a difusão, por exemplo, da meditação entre os homens de negócio atendeu à demanda de fazer acalmar para ajudar a ganhar mais dinheiro. Nesse sentido, no ocidente a meditação é usada como medicação, utilitariamente, deslocada de sua natureza original. Mais que um meio para a obtenção de um fim específico - e estranho ao meio - na Índia a meditação é parte de um modo de vida no qual o eu se encontra consigo mesmo.
Henry Miller se inspira profundamente nos ensinamentos de Krishnamurti, sobretudo ao deparar-se com a ideia de que o homem é o único libertador de si mesmo. Em vez de passar a vida toda dedicado a transformar o mundo para que, aí sim, passem a existir condições para a mudança do indivíduo, Krishnamurti propõe que está no próprio homem o poder para algo, na verdade muito simples: ser ele mesmo. Nesse sentido, minha liberdade para ser eu mesmo é muito diferente de poder ter a liberdade de ser quem eu quiser ser, o que, aliás, por não ter sentido, deverá levar a um contínuo processo de frustrações.
Ponto comum para Henry Miller e Thoreau é a negação da autoridade, seja ela qual for. Thoreau duvida abertamente que os velhos tenham realmente algum bom conselho a dar. Eles são, para o autor, os guardiões de velhos medos, transmissores de modos cautelosos cuja função será refrear os impulsos para experiências criadoras. Henry Miller se apoia no ideal de Krishnamurti de que não deve haver nenhum mestre, não deve haver quem queira seguidores. Recusando a posição de mestre recusa-se a vaidade, que ao cristalizar imagens do eu frequentemente muito distantes da realidade, aparece como mais uma prisão. Se há homens livres, seu papel é contribuir para a libertação de todos. Henry Miller destaca ainda que, para Krishnamurti, a vida é de uma simplicidade brutal. É o apego aos emaranhados teóricos propagados pelos "mestres" que faz amar a busca pela resposta difícil que será solucionada em algum ponto indeterminado do futuro. Para ver a resposta simples é preciso duvidar de tudo o que se diz ser certo ou errado. Tudo. De fato, é inevitável que esteja perdido e que se perca cada dia mais quem quer que se ocupe em citar autoridades e se identificar a elas, depositando confiança cega em suas palavras. Em pouco tempo uma doutrina religiosa, teórica ou política que eu me veja impelido a defender tomará posse de algum espaço interior meu importante para definir o que sou. Acontece que ela veio de fora.

II- Sofrimento humano: apontamentos acerca do filme 12 anos de escravidão

Será possível, então, independente da situação em que eu me encontre, tomar as rédeas do destino? Evidente que não. Há na história inúmeros exemplos de violência e opressão que reduzem drasticamente o alcance da ação individual na direção da liberdade. A escravidão negra colonial, sem dúvida aparece como um dos casos mais graves de destruição da potência humana.
Ao abordar o assunto, o filme 12 anos de escravidão (2013) propõe, acima de tudo a sensibilização pelo choque que a exposição direta da violência é capaz de provocar.
Acrescenta-se a isso uma certa sutileza no desenvolvimento da narrativa, cuja qualidade é provocar, mais que o mero choque da violência, o desespero pela asfixia na desgraça, uma vez que permite ao espectador imaginar-se em uma situação inescapável. Nesse sentido coloca-se diretamente a questão daquilo que o indivíduo é capaz de fazer por si, quando os escravos percebem que devem adotar estratégias de cooperação e obediência a fim de sobreviverem, em vez de se revoltarem contra seus opressores. Essa questão é colocada em tensão com as recorrentes cenas de abuso e castigos corporais, - que levam a mente a imaginar sua variedade e intensidade intermináveis - sempre acompanhados por uma passividade sem saída da parte dos escravos, já amortecidos, mesmo em seu íntimo, pela força da dominação. Essa tensão surge como elemento do filme que tem como finalidade provocar no espectador irritação e empatia, que por ser nele - ainda mero espectador - superficial, o leva a fantasiar sobre a rebelião que faria se fosse ele o escravo. A reflexão decorrente desse sentimento, obviamente acaba por gerar, finalmente, depressão, dado que não se trata apenas de um filme mas, sabidamente, desde o início, de um filme sobre acontecimentos reais existentes ao longo de séculos. O espectador, nesse momento, se dá conta de que seu desejo de rebelião acabou por criar uma esperança de transformar o passado para refazê-lo de um jeito melhor. Esse último passo da sensibilidade diante do filme acaba por converter qualquer disposição em pessimismo e impotência, o que acompanha o próprio desfecho do filme, assim que nos lembramos que o passado não pode ser mudado - e talvez nem redimido.

III- Inevitabilidade do mal e sensação de beco sem saída: arbitrariedades sobre Lima Barreto e Jean-Paul Sartre

Conforme não se pode deixar de ver, portanto, que o mal está em todos os lugares, não é de se espantar que exista entre muitas pessoas sãs uma total desesperança com o mundo. Essa perspectiva leva ou ao suicídio ou à variações entre cinismo e masoquismo. Quanto à segunda opção - que é a que interessa nesse momento - trata-se de uma disposição segundo a qual as pessoas desenvolvem fascínios estéticos por aquilo que as faz sofrer, o que, de modo algum ameniza o sofrimento.
Em seu livro A idade da razão, Jean-Paul Sartre criou Mathieu, cujo principal objetivo era ser completamente livre. As circunstâncias do mundo, no entanto, cada vez mais vão frustrando as expectativas de Mathieu e, mais que isso, vão levando-o a acreditar que sua liberdade ou é falsa ou não lhe traz nada de bom. Lima Barreto em seu Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá apresenta Augusto Machado que, como Mathieu é um intelectual com problemas de intelectual. Ele vê a maldade, a injustiça e a incompreensão consolidadas e disseminadas pelo mundo. A ponto de não suportar seu entendimento das coisas Augusto Machado observa tragicamente a (suposta) tranquilidade da vida dos pobres e ignorantes que, apesar de terem seus sofrimentos, levam suas vidas cotidianas sem grandes preocupações, cheios de distrações leves, bastando-lhes qualquer banalidade. Ele deseja, então, ser outro, ter uma mente simples mas, imediatamente, sabe que não é possível: está condenado a pensar demais sobre todas as coisas. O mesmo acontece ao Mathieu de Sartre. Ao perceber que sua valiosa liberdade era bastante duvidosa e certamente sem sentido, ele se vê incapaz de tomar atitudes concretas na direção da transformação. O problema para Mathieu é que atitudes concretas implicariam incoerências, contradições, e dilemas entre convicções inconciliáveis no interior da ordem abstrata de sua mente.
Mathieu e Augusto Machado estão paralisados diante da relação entre o que é e o que poderia ser - sem contar o desejo de que certas coisas não tivessem sido. A beleza dessa paralisia é inegável.
Sartre e Lima Barreto morreram esperando por um mundo melhor. Sartre bem que fez o que estava a seu alcance para mudá-lo, mas dificilmente se poderia dizer que conseguiu muito mais que acumular egocentrismo e amargura. Lima Barreto acabou por encenar na própria vida a tragédia de sua literatura.

Um comentário:

  1. Contra o contrato

    que permite que o dito

    se divorcie do feito

    a intenção do ato

    palavras ao vento

    combinado

    jurado

    nada


    Antes da forma em si

    uma escravidão da mente

    não se assina contrato

    apanha-se a moral

    como a ave de rapina

    apanha o vento

    livremente


    Palavras de ordem

    programas de intenções

    falsa solidariedade

    que explica tudo

    para ocultar a essencial,

    igualdade do ser

    triste fraternidade

    parasitária


    Gesto de caridade

    que oculta o próprio sofrimento

    a dor e a miséria que

    se esconde do outro para afirmar

    a superioridade de si

    que sabe ser só e fraco no mundo

    de iguais fraquezas

    só assim solitárias


    A associação

    união do calado, oculto

    pela comunhão do até logo

    pra começo de conversa,

    quem sabe até do amanhã

    que as frases de efeito atravessem

    com a força de novo vento

    e o conteúdo vá além da frase

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